sábado, 17 de outubro de 2015

Confidencial

Creio que existe, neste momento, uma enorme falta de seriedade ao lidar com matérias sigilosas/confidenciais. Na verdade, isto é confidencial é utilizado com alguma frequência como iniciador de conversa, já que expectavelmente gerará interesse do outro lado. Trabalhar com matérias confidenciais torna-se assim excitante e apelativo, quando na realidade seria desgastante se o dito sigilo fosse respeitado.

Pretendo aqui apenas chamar a atenção para o problema, sem pretensões de diagnóstico ou resolução. Até porque as razões que levam as pessoas a quebrar o sigilo em torno de algo variam drasticamente, desde a simples coscuvelhice até aos interesses económicos ou políticos. Não pretendo assim reflectir sobre o que poderia ser feito para atenuar estes abusos (e certamente que haveria muitas formas de o fazer) mas sim chamar a atenção para a leviandade com que os profissionais (e mesmo a restante população) encara o assunto.

Vou então falar de duas situações a meu ver ilustrativas do fenómeno: o recente escândalo em torno dos dados fiscais e uma mais subtil mas recorrente violação do sigilo médico.

Em relação à primeira não me refiro ao caso da lista VIP, mas sim à descoberta de que certas personalidade e celebridades reuniiam um número estranhamento elebado de consultas aos seus dados fiscais. Consultas essas que não eram, em grande parte, justificadas por necessidades profissionais. Confrontados com essa realidade, alguns funcionários prevaricadoress defenderam-se alegando que a consulta teria sido efectuada por mera curiosidade.

Ora bem, embora por um lado seja tranquilizador que a consulta não tenha sido efectuada por motivos mais sombrios (eg: vender os dados) não é por outro reconfortante saber que alguns funcionários colocam a sua curiosidade acima do segredo fiscal. Os dados são considerados sigilosos por alguma razão e, a não ser quando justificada por motivos profissionais, a sua consulta qualifica-se como abuso de poder.

Relativamente à segunda situação queria dividi-lo em duas questões separadas: tagarelice nos corredores e em casa e a relação dos hospitais com os media.

A primeira é relativamente inocente, mas ainda assim merecedora de atenção. Refiro-me ao "epá hoje tive este doente que fazia isto e acoloutro", tipicamente aplicado a hábitos estranhos e/ou ligados a questões sensíveis na nossa sociedade, como o sejam a sexualidade. Tipicamente não são referidos nomes (caso em que passaria de relativamente inocente a bastante grave) mas, no caso da tagarelice de corredor (no local de trabalho), não é obviamente difícil de descobrir quem é.

No caso doméstico o assunto é ainda mais inocente, já que mesmo neste mundo pequeno seria difícil descobrir a identidade do utente, mas ainda assim admito que poderia ser criticável enquanto risco desnecessário. Chamo no entanto a atenção para, no caso de celebridades, o sigilo médico ser descartado por completo e ser comum ver todo o tipo de profissionais de saúde a discutir as suas maleitas nos corredores e em casa. A título de exemplo, chegaram aos ouvidos de muitos Portugueses alguns dos hábitos e maleitas de Eusébio, durante o seu internamento. Há que ver que mesmo o mais inocente "esteve hoje no meu consultório o ..." é na minha opinião altamente reprovável já que, sabendo a especialidade do médico, se fica logo com uma ideia do tipo de problemas que a pessoa possa ter. A reflectir.

A segunda questão, mais grave e estranha na minha opinião, prende-se com as declarações aos jornalistas, por parte de profissionais de saúde e/ou administradores, à porta do Hospital. É tão comum como reprovável ver, em casos que involvem figuras públicas, médicos a falar da situação clínica do paciente aos jornalistas. Embora em alguns casos possa existir um consentimento do doente ou da família (vêm-me à cabeça os casos do Eusébio e de Maria Barroso) noutros penso que nem isso aconteceu (recordo-me por exemplo do recente caso da mão toxicodependente que fugiu da maternidade com o filho recém-nascido). Pessoalmente advogo que, mesmo com o consentimento do paciente ou família, não é o papel dos profissionais de saúde prestar declarações à  imprensa sobre o caso clínico dos doentes a seu cargo.

Estes não são, como é óbvio, os únicos casos em que isto acontece, nem sequer os mais graves (veja-se por exemplo as recorrentes violações do segredo de justiça). Mas acho que são representativos da pouca importância que as pessoas dão ao carimbo sigiloso.

Para terminar, gostava de lançar para reflexão uma questão relativa à responsabilidade. Nos termos da lei, apenas comete um crime aquele que obtém e transmite informação confidencial. A sua consequente publicação e leitura já não é criminalizável. Pensemos a título de exemplo no recente caso o leak de documento confidenciais do Sporting, entre os quais o contrato de trabalho de Jorge Jesus. É considerado criminoso o hacker que obteve os dados e os disponibilizou inicialmente. Já não tem nada a recear o cidadão comum que, mesmo sabendo que os dados são confidenciais e foram obtidos de forma legítima, os vai consultar. Isto pode fazer sentido, já que seria muito difícil provar que a pessoa sabia que aquilo que ia consultar era sigiloso e tinha sido obtido de forma ilegal*. Mas também não são atrbuídas culpas aos meios de comunicação que, sabendo que o material é confidencial, o re-publicam e comentam. No caso do exemplo usado, muitos foram os comentários feitos pelos meios de comunicação social ao contrato de Jorge Jesus. Ora aqui não temos apenas um cidadão a consultar por mera curiosidade; temos organizações a aproveitarem-se de actos ilegais (praticados por outrém) para subir audiências e/ou ganhar dinheiro. Não poderia isto ser criminalizável?


Filipe Baptista de Morais

*De notar que este desconhecimento nada tem a ver com desconhecimento da legislação em vigor, que não serve de desculpa ao seu incumprimento.

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