Foi recentemente aprovada (ou reposta, não tenho a certeza se já teria existido em tempos) uma medida de incentivo à doação de sangue que consiste em dar aos dadores isenção de taxas moderadoras no Sistema Nacional de Saúde. Embora o fim seja sem dúvida nobre, não concordo muito com os meios.
Em primeiro lugar, porque o incentivo parece sofrer de uma certa e perversa ironia. Nem toda a gente pode dar sangue e usufruir da isenção, nomeadamente por motivos de saúde visto que algumas doenças/condições comprometem a qualidade do sangue e/ou a segurança do dador. Excluem-se assim, sem qualquer lógica de justiça, algumas das pessoas que mais poderiam beneficiar da dita isenção.
Em segundo lugar discordo da medida pois consiste numa forma encapotada de incentivo financeiro à doação de sangue; isto é, trata-se de uma forma dissimulada de comprar sangue. Não digo que isso seja impensável, mas há sempre muitas vozes que se erguem contra isso quando o debate surge (com argumentos como pôr em causa a qualidade do sangue ao incentivar potenciais dadores a mentir nos inquéritos, etc...) e portanto é uma medida que, a ser tomada, o deveria ser abertamente e após um debate sério na sociedade civil. Para mais, trata-se de uma compra por valor incerto, levando a imprevisibilidade quer nas contas (quanto vai custar ao Estado?) quer no impacto (quanto vale uma isenção para o cidadão comum?). Leva ainda a uma certa injustiça, já que alguns dadores poderão não tirar qualquer benefício enquanto outros poderão poupar centenas de euros (e sabê-lo de antemão). Isto poderia claro, ser resolvido se o benefício fosse (assumidamente) financeiro e de valor conhecido.
A medida pode ainda levar a uma certa ineficiência derivada do aumento de dádivas inválidas de pessoas que, sabendo não ter condições de saúde para doar sangue, se desloquem na mesma às instalações visto que, não tendo culpa do chumbo, provavelmente manteriam a isenção. Isto geraria, obviamente, desperdício de recursos.
Todos estes argumentos podem ser considerados menores face às vantagens de atrair mais dadores*. Mas ainda assim defendo que esse incentivo, a ser necessário, nunca deveria vir de uma isenção de taxas moderadoras. Isto porque têm um propósito que não punir o cidadão nem financiar o Estado, mas sim moderar o recurso aos serviços de saúde de modo a reduzir tempos de espera e melhorar a capacidade de resposta. Não faz, portanto, sentido sacrificar esse fim para obter mais dadores. Alternativas poderiam ser, por exemplo, uma redução no IRS, dia(s) extra de férias ou, simplesmente, um cheque endereçado.
Filipe Baptista de Morais
*Ainda para mais se notarmos que alguns (como a injustiça para os impedidos de doar e a ineficiência) serão provavelmente verdade para qualquer regime de incentivos, não podendo por isso ser entendidos como uma crítica a este tipo de incentivo em particular, mas apenas entrar no debate sobre se devem existir incentivos de todo ou não.
domingo, 10 de janeiro de 2016
sábado, 9 de janeiro de 2016
Legislativas: formação de governo
Antes de mais, uma pequena nota contextual: este texto foi começado pouco depois das últimas eleições legislativas, e antes da tomada de posse do actual governo. É assim natural que algumas partes possam parecer desactualizadas. O crucial do raciocínio, no entanto, mantém-se.
No rescaldo das recentes eleições legislativas surgiu a hipótese governativa de uma coligação (pós-eleitoral obviamente) PS+BE+PCP. Muito se tem escrito sobre a legitimidade (ou falta dela) dessa solução, numa discussão que tende a azedar e a subir de tom. Excepcionalmente compreendo e subscrevo muita da terminologia mais agressiva utilizada nesta discussão*, dada a sua gravidade. Felizmente é mais fácil moderar a caneta do que a voz, pelo que tentarei expôr a minha opinião sobre o assunto o mais serenamente possível.
Começo por uma clarificação de posição e um reparo relativamente perpendicular à temática. A primeira passa por afirmar que não considero de todo que essa solução governativa tenha legitimidade política. Já explicarei a minha posição, como é óbvio, mas primeiro quero deixar o prometido reparo.
O sistema eleitoral deve ser tão transparente como possível, de modo a garantir que as pessoas se sintam representadas e que os governos eleitos tenham a autoridade e legitimidade para governar, Sendo uma democracia relativamente madura, já não sofremos (creio eu) de desconfianças em relação à liberdade de voto e à contagem dos mesmos. Mas a transparência eleitoral não se fica por aqui; é também importante a previsibilidade da interpretação eleitoral, ou seja, saber o que vai acontecer dada uma certa distribuição de votos. Em Portugal o presidente da república tem poderes para empossar diferentes governos ou primeiro-ministros e pessoalmente não sou contra essa liberdade. Permite alguma flexibilidade para algum caso extremo e imprevisto e, sendo o PR eleito por sufrágio universal directo (a duas voltas, se necessário), pode-se considerar democraticamente aceitável atribuir-lhe essa responsabilidade. Mas em tempos de normalidade democrática temos tudo a ganhar em seguir uma simples (e lógica) rule of thumb de tentar primeiro um governo liderado pelo partido mais votado. Quando esta previsibilidade é posta em causa, quebra-se a confiança das pessoas nessa democracia, o que é terrível. E já está a acontecer: ora vejamos, se Cavaco Silva chamar Passos Coelho para liderar um executivo, grande parte da população considerará que o fez por favor ou preferência partidária. Se chamar Costa, outros tantos clamaram contra aquilo que consideram um golpe de estado.
Há ainda aqui outra questão importante a respeito da previsibilidade (e que levanta um bom argumento contra a referida liberdade presidencial) que é a de os Portugueses encararem as legislativas como eleições para primeiro-ministro. Bem sei que, formalmente, votamos para eleger a Assembleia (mais concretamente para eleger deputados no nosso círculo). Mas, como disse e bem Paulo Ferreira no seu artigo de opinião n'Observador: os eleitores dizem que votam no Costa ou no Passos, no Bloco ou no PC, mas nunca ouvi ninguém dizer que ia votar no Mendes ou na Pereira, que estão algures em terceiro e sétimo lugar das duas listas de deputados.** E nem podemos culpar o povo pela sua interpretação do acto, pois toda a campanha é feita em torno desses protagonistas. Ou terá havido algum debate entre a reformada que o BE elegeu no Porto e qualquer outro candidato a deputado anónimo de outro partido que me escapou? Esta personalização do voto, quiçá evitável com melhor informação (na minha opinião, muito dificilmente) existe e levanta uma séria objeção a que o convidado a primeiro-ministro seja qualquer outro que não o líder do partido mais votado. Esta discrepância entre o significado formal das legislativas e a sua interpretação "pelo povo" também é um bom argumento no sentido de alterar o regime eleitoral (ou, alternativamente, a sua perceção) de modo a melhor corresponder às percepções e expectativas das pessoas. Mas isso é outra discussão.
Como referi anteriormente, isto acima não passou de um (longo) reparo, que não é centrla na defesa da não legitimidade (política) da solução governativa PS+BE+PCP. Vou agora começar a explicar o porquê da minha posição.
Em princípio não teria nada contra a nomeação de um governo composto por uma coligação pós-eleitoral que excluísse o partido mais votado. Como já referi antes acho que, a bem da previsibilidade, se deveria tentar primeiro um governo liderado pelo partido mais votado. Mas, sendo este rejeitado pela maioria da Assembleia, posteriormente faria todo o sentido testar essa alternativa. E, ainda que não concorde, percebo o argumento de que, tendo os partidos "avisado" o PR de que iriam rejeitar a primeira opção de governo, se poupe tempo e se avance directamente para a segunda opção***.
O que rejeito é, portanto, esta coligação em particular. Não por incluir partidos ditos da "extrema-esquerda" (aproveito para dizer que colocaria o célebre discurso pós-eleitoral de Cavaco Silva entre o politicamente infeliz e o gravemente anti-democrático, dependendo da interpretação). Se uma coligação BE-PCP reunisse uma maioria na Assembleia teria toda a legitimidade para avançar para o Governo. A falta de legitimidade da coligação apresentada prende-se com o simples facto de não fazer sentido politicamente, isto é, a coligação**** nasce e mantém-se não por convergência ideológica e programática mas por sim por interesses bem mais mesquinhos.
Ora vejamos, uma leitura rápida dos programas dos partidos (assim como uma avaliação das medidas praticadas pelos governos recentes) indica que, ideológica e programaticamente, o PS se encontra infinitamente mais próximo da PaF do que do BE e PCP*****. Faria pois muito mais sentido o PS negociar com a PaF, tendo essa coligação diversas vantagens face à em cima da mesa, tais como:
Os incentivos para BE e PCP são ainda mais óbvios: têm nesta coligação uma hipótese de influenciar as políticas de um futuro governo de forma desproporcionada ao seu sucesso eleitoral, ainda para mais sem se comprometerem grandemente, já que não o irão integrar. É importante ainda ressalvar que, não tendo o PS sem eles qualquer legitimidade a pretensões de governo, BE e PCP têm assim uma enorme força negocial nestas conversações.
Esta coligação é assim uma manobra tão desesperada quanto perigosa de Costa (e eventualmente do PS) de chegar a Governo, que não tem legitimidade política****** já que não se prende por questões políticas (excepto na versão House of Cards da coisa), mas sim por interesses pessoais. Pior: a ser considerada como uma manobra válidade do ponto de vista político abre um perigoso precedente. Sendo os partidos ao centro (PSD e PS) as duas forças tipicamente mais votadas, e com a crescente fragmentação do eleitorado a não facilitar maiorias absolutas, estes poderiam passar a ter o incentivo de negociarem não um com o outro (como ditaria a lógica programática e até o sentido eleitoral) mas sim com partidos mais extremistas, conseguindo assim o 2º partido mais votado chegar ao poder através de importantes e desnecessárias cedências programáticas. De notar que esta opção estaria vedada à força mais votada (hoje, PaF) já que o seu eleitorado dificilmente compreenderia a necessidade de tais negociações e cedências.
É importante também aqui referir que nada disto seria válido se se tratasse de uma coligação pré-eleitoral, ou se a hipótese de coligação pós-eleitoral tivesse sido publicamente assumida e discutida.
Seja qual for o governo a tomar posse, o maior mal está feito: uma grande parte da população considerá-lo-á ilegítimo. Defendo por mim a (re-)convocação de eleições o mais depressa possível.
Para terminar, gostaria ainda de comentar aquelas que são, na minha opinião, as causas da fragmentação da opinião pública a este respeito. A primeira prende-se com o facto de o discurso político em Portugal, e principalmente o assumido pela Oposição (não esta Oposição, mas todas em geral) ser maioritariamente baseado em demagogia vazia, e não em qualquer ideologia. Aqui tanto Passos como Portas têm enormes culpas no cartório; basta lembrar-mo-nos de como faziam o discurso "anti-austeridade" quando eram oposição (tão parecido com o discurso do PS para estas eleições...) e agora se apresentam como os paladinos da responsabilidade orçamental. Isto gera, obviamente, um enorme fosso entre os discursos efectuados nos comícios e a realidade dos programas e leva a que seja muito mais difícil identificar os pontos de divergência e convergência entre os partidos. Em particular, tende a gerar um fosso artificial entre os partidos com assento governamental e todos os outros, parecendo também estes ideologicamente muito mais próximos do que realmente são. A segunda é o cinismo com que a maior parte das pessoas já encara a política. Não são poucos os comentadores políticos que vejo concordarem com a minha análise da génese da coligação PS+BE+PCP (ie: que esta surge como uma manobra de sobrevivência política de António Costa) mas que discordam das minhas conclusões, considerando tudo isto muito normal. Urge exigirmos mais aos políticos.
Filipe Baptista de Morais
* Digo excepcionalmente porque considero que, de um modo geral, o tom utilizado em discussões políticas é demasiado e desnecessariamente estridente, sensacionalista e apocalíptico, acentuando até ao infinito as mais ínfimas divergências e impossibilitando qualquer consenso ou compromisso.
** Com a excepção eventualmente de vou votar na Mortágua, mas pelo simples facto de para algumas pessoas a sua popularidade a ter tornado uma espécie de líder não oficial do BE.
*** E não concordo essencialmente por duas razões. Primeiro porque um "aviso" não é um voto: assim como não se podem cancelar eleições simplesmente porque as sondagens dão a vitória a este ou aquele, evitar uma votação da Assembleia devido às posições assumidas publicamente pelos partidos seria perigosamente anti-democrático. Em segundo, e talvez mais importante, porque sou absolutamente contra a disciplina de voto, e com ou sem ela (pois ela não existe legalmente, é um mecanismo intra-partidário) um líder partidário não pode dar garantias da direcção de voto de todos os deputados eleitos pelo seu partido.
**** Já agora convém referir que, apesar de se usar sem moderação o termo coligação na comunicação social (tendo por isso optado por o manter aqui, a título de simplicidade) a verdade é que se trada apenas de um acordo (no papel nem isso lhe chamam, na realidade) que apenas assegura a votação da moção de rejeição do executivo liderado por Passos Coelho e a aceitação de um liderado por Costa.
***** Os próprios BE e PCP sempre souberam isto, tendo-o pregado a plenos pulmões na campanha eleitoral. Convém também lembrar que, embora nunca o tenha rejeitado directamente, o PS nunca deu a entender que iria seguir este caminho. Pelo contrário, fez campanha eleitoral a dizer que um voto no PCP ou no BE era um voto perdido, ajudando a "Direita". Mais, até as primeiras sondagens darem mais votos à coligação PaF, havia a assumção tácita de que a coligação/partido mais votado lideraria o executivo. Após uma primeira sondagem, que dava a PaF com mais votos (mas não mais deputados) vários socialistas vieram a público dizer que o Governo deveria ser liderado pela força política com mais deputados eleitos, e não mais votos. Poucos dias depois a PaF aparecia nas sondagens também com mais deputados, altura em que o discurso voltou a mudar e a legitimidade de formar governo passou a pertencer ao partido com mais deputados, não considerando a soma da coligação (engraçado como agora se somam não só coligações como meros não-acordos). Só depois das eleições, quando até essa hipótese se viu gorada, é que esta solução governativa foi admitida publicamente.
****** Já agora não se confunda legitimidade política com permissão constitucional. Essa tem-na obviamente; mas também a teria um executivo liderado por André Silva (hint: PAN) sem quaisquer acordos.
No rescaldo das recentes eleições legislativas surgiu a hipótese governativa de uma coligação (pós-eleitoral obviamente) PS+BE+PCP. Muito se tem escrito sobre a legitimidade (ou falta dela) dessa solução, numa discussão que tende a azedar e a subir de tom. Excepcionalmente compreendo e subscrevo muita da terminologia mais agressiva utilizada nesta discussão*, dada a sua gravidade. Felizmente é mais fácil moderar a caneta do que a voz, pelo que tentarei expôr a minha opinião sobre o assunto o mais serenamente possível.
Começo por uma clarificação de posição e um reparo relativamente perpendicular à temática. A primeira passa por afirmar que não considero de todo que essa solução governativa tenha legitimidade política. Já explicarei a minha posição, como é óbvio, mas primeiro quero deixar o prometido reparo.
O sistema eleitoral deve ser tão transparente como possível, de modo a garantir que as pessoas se sintam representadas e que os governos eleitos tenham a autoridade e legitimidade para governar, Sendo uma democracia relativamente madura, já não sofremos (creio eu) de desconfianças em relação à liberdade de voto e à contagem dos mesmos. Mas a transparência eleitoral não se fica por aqui; é também importante a previsibilidade da interpretação eleitoral, ou seja, saber o que vai acontecer dada uma certa distribuição de votos. Em Portugal o presidente da república tem poderes para empossar diferentes governos ou primeiro-ministros e pessoalmente não sou contra essa liberdade. Permite alguma flexibilidade para algum caso extremo e imprevisto e, sendo o PR eleito por sufrágio universal directo (a duas voltas, se necessário), pode-se considerar democraticamente aceitável atribuir-lhe essa responsabilidade. Mas em tempos de normalidade democrática temos tudo a ganhar em seguir uma simples (e lógica) rule of thumb de tentar primeiro um governo liderado pelo partido mais votado. Quando esta previsibilidade é posta em causa, quebra-se a confiança das pessoas nessa democracia, o que é terrível. E já está a acontecer: ora vejamos, se Cavaco Silva chamar Passos Coelho para liderar um executivo, grande parte da população considerará que o fez por favor ou preferência partidária. Se chamar Costa, outros tantos clamaram contra aquilo que consideram um golpe de estado.
Há ainda aqui outra questão importante a respeito da previsibilidade (e que levanta um bom argumento contra a referida liberdade presidencial) que é a de os Portugueses encararem as legislativas como eleições para primeiro-ministro. Bem sei que, formalmente, votamos para eleger a Assembleia (mais concretamente para eleger deputados no nosso círculo). Mas, como disse e bem Paulo Ferreira no seu artigo de opinião n'Observador: os eleitores dizem que votam no Costa ou no Passos, no Bloco ou no PC, mas nunca ouvi ninguém dizer que ia votar no Mendes ou na Pereira, que estão algures em terceiro e sétimo lugar das duas listas de deputados.** E nem podemos culpar o povo pela sua interpretação do acto, pois toda a campanha é feita em torno desses protagonistas. Ou terá havido algum debate entre a reformada que o BE elegeu no Porto e qualquer outro candidato a deputado anónimo de outro partido que me escapou? Esta personalização do voto, quiçá evitável com melhor informação (na minha opinião, muito dificilmente) existe e levanta uma séria objeção a que o convidado a primeiro-ministro seja qualquer outro que não o líder do partido mais votado. Esta discrepância entre o significado formal das legislativas e a sua interpretação "pelo povo" também é um bom argumento no sentido de alterar o regime eleitoral (ou, alternativamente, a sua perceção) de modo a melhor corresponder às percepções e expectativas das pessoas. Mas isso é outra discussão.
Como referi anteriormente, isto acima não passou de um (longo) reparo, que não é centrla na defesa da não legitimidade (política) da solução governativa PS+BE+PCP. Vou agora começar a explicar o porquê da minha posição.
Em princípio não teria nada contra a nomeação de um governo composto por uma coligação pós-eleitoral que excluísse o partido mais votado. Como já referi antes acho que, a bem da previsibilidade, se deveria tentar primeiro um governo liderado pelo partido mais votado. Mas, sendo este rejeitado pela maioria da Assembleia, posteriormente faria todo o sentido testar essa alternativa. E, ainda que não concorde, percebo o argumento de que, tendo os partidos "avisado" o PR de que iriam rejeitar a primeira opção de governo, se poupe tempo e se avance directamente para a segunda opção***.
O que rejeito é, portanto, esta coligação em particular. Não por incluir partidos ditos da "extrema-esquerda" (aproveito para dizer que colocaria o célebre discurso pós-eleitoral de Cavaco Silva entre o politicamente infeliz e o gravemente anti-democrático, dependendo da interpretação). Se uma coligação BE-PCP reunisse uma maioria na Assembleia teria toda a legitimidade para avançar para o Governo. A falta de legitimidade da coligação apresentada prende-se com o simples facto de não fazer sentido politicamente, isto é, a coligação**** nasce e mantém-se não por convergência ideológica e programática mas por sim por interesses bem mais mesquinhos.
Ora vejamos, uma leitura rápida dos programas dos partidos (assim como uma avaliação das medidas praticadas pelos governos recentes) indica que, ideológica e programaticamente, o PS se encontra infinitamente mais próximo da PaF do que do BE e PCP*****. Faria pois muito mais sentido o PS negociar com a PaF, tendo essa coligação diversas vantagens face à em cima da mesa, tais como:
- Inclui o partido mais votado (para os que se mostram muito preocupados com a exclusão de 20% dos eleitores do Governo há que relembrar que a PaF reuniu quase o dobro)
- Representaria quase mais 20% do eleitorado (~70% vs ~50%, contas por alto)
- Implicaria muito menos cedências de parte a parte, já que os programas são muito mais parecidos
Os incentivos para BE e PCP são ainda mais óbvios: têm nesta coligação uma hipótese de influenciar as políticas de um futuro governo de forma desproporcionada ao seu sucesso eleitoral, ainda para mais sem se comprometerem grandemente, já que não o irão integrar. É importante ainda ressalvar que, não tendo o PS sem eles qualquer legitimidade a pretensões de governo, BE e PCP têm assim uma enorme força negocial nestas conversações.
Esta coligação é assim uma manobra tão desesperada quanto perigosa de Costa (e eventualmente do PS) de chegar a Governo, que não tem legitimidade política****** já que não se prende por questões políticas (excepto na versão House of Cards da coisa), mas sim por interesses pessoais. Pior: a ser considerada como uma manobra válidade do ponto de vista político abre um perigoso precedente. Sendo os partidos ao centro (PSD e PS) as duas forças tipicamente mais votadas, e com a crescente fragmentação do eleitorado a não facilitar maiorias absolutas, estes poderiam passar a ter o incentivo de negociarem não um com o outro (como ditaria a lógica programática e até o sentido eleitoral) mas sim com partidos mais extremistas, conseguindo assim o 2º partido mais votado chegar ao poder através de importantes e desnecessárias cedências programáticas. De notar que esta opção estaria vedada à força mais votada (hoje, PaF) já que o seu eleitorado dificilmente compreenderia a necessidade de tais negociações e cedências.
É importante também aqui referir que nada disto seria válido se se tratasse de uma coligação pré-eleitoral, ou se a hipótese de coligação pós-eleitoral tivesse sido publicamente assumida e discutida.
Seja qual for o governo a tomar posse, o maior mal está feito: uma grande parte da população considerá-lo-á ilegítimo. Defendo por mim a (re-)convocação de eleições o mais depressa possível.
Para terminar, gostaria ainda de comentar aquelas que são, na minha opinião, as causas da fragmentação da opinião pública a este respeito. A primeira prende-se com o facto de o discurso político em Portugal, e principalmente o assumido pela Oposição (não esta Oposição, mas todas em geral) ser maioritariamente baseado em demagogia vazia, e não em qualquer ideologia. Aqui tanto Passos como Portas têm enormes culpas no cartório; basta lembrar-mo-nos de como faziam o discurso "anti-austeridade" quando eram oposição (tão parecido com o discurso do PS para estas eleições...) e agora se apresentam como os paladinos da responsabilidade orçamental. Isto gera, obviamente, um enorme fosso entre os discursos efectuados nos comícios e a realidade dos programas e leva a que seja muito mais difícil identificar os pontos de divergência e convergência entre os partidos. Em particular, tende a gerar um fosso artificial entre os partidos com assento governamental e todos os outros, parecendo também estes ideologicamente muito mais próximos do que realmente são. A segunda é o cinismo com que a maior parte das pessoas já encara a política. Não são poucos os comentadores políticos que vejo concordarem com a minha análise da génese da coligação PS+BE+PCP (ie: que esta surge como uma manobra de sobrevivência política de António Costa) mas que discordam das minhas conclusões, considerando tudo isto muito normal. Urge exigirmos mais aos políticos.
Filipe Baptista de Morais
* Digo excepcionalmente porque considero que, de um modo geral, o tom utilizado em discussões políticas é demasiado e desnecessariamente estridente, sensacionalista e apocalíptico, acentuando até ao infinito as mais ínfimas divergências e impossibilitando qualquer consenso ou compromisso.
** Com a excepção eventualmente de vou votar na Mortágua, mas pelo simples facto de para algumas pessoas a sua popularidade a ter tornado uma espécie de líder não oficial do BE.
*** E não concordo essencialmente por duas razões. Primeiro porque um "aviso" não é um voto: assim como não se podem cancelar eleições simplesmente porque as sondagens dão a vitória a este ou aquele, evitar uma votação da Assembleia devido às posições assumidas publicamente pelos partidos seria perigosamente anti-democrático. Em segundo, e talvez mais importante, porque sou absolutamente contra a disciplina de voto, e com ou sem ela (pois ela não existe legalmente, é um mecanismo intra-partidário) um líder partidário não pode dar garantias da direcção de voto de todos os deputados eleitos pelo seu partido.
**** Já agora convém referir que, apesar de se usar sem moderação o termo coligação na comunicação social (tendo por isso optado por o manter aqui, a título de simplicidade) a verdade é que se trada apenas de um acordo (no papel nem isso lhe chamam, na realidade) que apenas assegura a votação da moção de rejeição do executivo liderado por Passos Coelho e a aceitação de um liderado por Costa.
***** Os próprios BE e PCP sempre souberam isto, tendo-o pregado a plenos pulmões na campanha eleitoral. Convém também lembrar que, embora nunca o tenha rejeitado directamente, o PS nunca deu a entender que iria seguir este caminho. Pelo contrário, fez campanha eleitoral a dizer que um voto no PCP ou no BE era um voto perdido, ajudando a "Direita". Mais, até as primeiras sondagens darem mais votos à coligação PaF, havia a assumção tácita de que a coligação/partido mais votado lideraria o executivo. Após uma primeira sondagem, que dava a PaF com mais votos (mas não mais deputados) vários socialistas vieram a público dizer que o Governo deveria ser liderado pela força política com mais deputados eleitos, e não mais votos. Poucos dias depois a PaF aparecia nas sondagens também com mais deputados, altura em que o discurso voltou a mudar e a legitimidade de formar governo passou a pertencer ao partido com mais deputados, não considerando a soma da coligação (engraçado como agora se somam não só coligações como meros não-acordos). Só depois das eleições, quando até essa hipótese se viu gorada, é que esta solução governativa foi admitida publicamente.
****** Já agora não se confunda legitimidade política com permissão constitucional. Essa tem-na obviamente; mas também a teria um executivo liderado por André Silva (hint: PAN) sem quaisquer acordos.
segunda-feira, 19 de outubro de 2015
Legislativas: as sondagens
Este ano tivemos direito a dose reforçada de sondagens, com pelo menos duas entidades a realizá-las diariamente. Estas proporcionam-nos sempre algum divertimento, com os partidos que aparecem à frente a vangloriarem-se (toma, toma, eu tenho mais amigos do que tu!) e os que aparecem atrás a insinuar que estas são manipuladas e/ou a desvalorizá-las, dizendo que fazem as suas próprias sondagens na rua (e estas são invariavelmente positivas).
Pessoalmente, não acredito que as sondagens sejam manipuladas. Até porque, tendo esse poder, um político corrupto não saberia o que fazer com ele. Por exemplo, imaginemos que António Costa tinha o poder de encomendar uma sondagem com o resultado que quisesse. O que escolheria? Uma vitória clara do PS, para gerar dinâmica e motivar os indecisos a votar PS? Um empate técnico com a PAF, para apelar a que nenhum dos seus simpatizantes fique em casa? Ou uma vitória clara da PAF, para assim apelar ao voto útil? A resposta é difícil (as reacções dos eleitores são bastante imprevisíveis) pelo que não acredito que nenhum partido se desse a esse trabalho (e corresse o risco de ser apanhado) sem garantias de que isso tivesse uma influência positivas nas intenções de voto.
Outra coisa engraçada nas sondagens é ver como não encaixam nos intervalos de confiança umas das outras*. E no entanto continua-se a utilizar alegremente termos como erro máximo da amostra, por vezes sem referir sequer o intervalo de confiança correspondente. Para quem não está muito por dentro de estatística isso deveria dar logo um aviso relativamente ao verdadeiro significado desses números.
Apesar do referido acima, talvez o leitor tenha reparado que as sondagens efectuadas pela mesma entidade se mantêm relativamente constantes ao longo do tempo. Isto deve-se ao facto (pouco noticiado) se utilizarem o esquema conhecido por tracking poll, em que a amostra é sempre a mesma (ie: telefonam sempre às mesmas pessoas). Neste caso em concreto penso que iam substituindo uma parte da amostra a cada nova sondagem, mas mantendo o grosso da mesma constante. É assim facilmente perceptível como uma entidade obtém resultados consistentes entre si ao longo do tempo mas inconsistentes com as sondagens de outras entidades. Este tipo de sondagem serve assim essencialmente para medir tendências de alteração de voto, e o facto de se fazerem N sondagens (com a mesma amostra) não aumente a fiabilidade das mesmas, como intuitivamente seria de esperar.
Não podia deixar de fazer aqui uma enorme crítica a todas as entidades responsáveis por sondagens por não terem incluído todos os partidos candidatos nas mesmas. Não custava nada e ajudava a combate a ideia (algo fundamentada na minha opinião) de que a comunicação social favorece imenso os partidos mais conhecidos e discrimina os recém-chegados.
Finalmente, um pequeno apontamento em relação à sua utilizadade que é, a meu ver, nenhuma. Excepto talvez como entretenimento. Pior, o tempo de antena que se gasta a mostrar resultados de sondagens e posteriormente a analisá-los e comentá-los é tempo não usado para exposição e clarificação de propostas políticas. Assim sendo, não vejo porque razão se há-de utilizar fundos públicos (a partir da RTP) para financiar sondagens. O privado que se entretenha com isso.
Filipe Baptista de Morais
*A título de exemplo, vejam esta e esta, realizadas com um dia de diferença.
Pessoalmente, não acredito que as sondagens sejam manipuladas. Até porque, tendo esse poder, um político corrupto não saberia o que fazer com ele. Por exemplo, imaginemos que António Costa tinha o poder de encomendar uma sondagem com o resultado que quisesse. O que escolheria? Uma vitória clara do PS, para gerar dinâmica e motivar os indecisos a votar PS? Um empate técnico com a PAF, para apelar a que nenhum dos seus simpatizantes fique em casa? Ou uma vitória clara da PAF, para assim apelar ao voto útil? A resposta é difícil (as reacções dos eleitores são bastante imprevisíveis) pelo que não acredito que nenhum partido se desse a esse trabalho (e corresse o risco de ser apanhado) sem garantias de que isso tivesse uma influência positivas nas intenções de voto.
Outra coisa engraçada nas sondagens é ver como não encaixam nos intervalos de confiança umas das outras*. E no entanto continua-se a utilizar alegremente termos como erro máximo da amostra, por vezes sem referir sequer o intervalo de confiança correspondente. Para quem não está muito por dentro de estatística isso deveria dar logo um aviso relativamente ao verdadeiro significado desses números.
Apesar do referido acima, talvez o leitor tenha reparado que as sondagens efectuadas pela mesma entidade se mantêm relativamente constantes ao longo do tempo. Isto deve-se ao facto (pouco noticiado) se utilizarem o esquema conhecido por tracking poll, em que a amostra é sempre a mesma (ie: telefonam sempre às mesmas pessoas). Neste caso em concreto penso que iam substituindo uma parte da amostra a cada nova sondagem, mas mantendo o grosso da mesma constante. É assim facilmente perceptível como uma entidade obtém resultados consistentes entre si ao longo do tempo mas inconsistentes com as sondagens de outras entidades. Este tipo de sondagem serve assim essencialmente para medir tendências de alteração de voto, e o facto de se fazerem N sondagens (com a mesma amostra) não aumente a fiabilidade das mesmas, como intuitivamente seria de esperar.
Não podia deixar de fazer aqui uma enorme crítica a todas as entidades responsáveis por sondagens por não terem incluído todos os partidos candidatos nas mesmas. Não custava nada e ajudava a combate a ideia (algo fundamentada na minha opinião) de que a comunicação social favorece imenso os partidos mais conhecidos e discrimina os recém-chegados.
Finalmente, um pequeno apontamento em relação à sua utilizadade que é, a meu ver, nenhuma. Excepto talvez como entretenimento. Pior, o tempo de antena que se gasta a mostrar resultados de sondagens e posteriormente a analisá-los e comentá-los é tempo não usado para exposição e clarificação de propostas políticas. Assim sendo, não vejo porque razão se há-de utilizar fundos públicos (a partir da RTP) para financiar sondagens. O privado que se entretenha com isso.
Filipe Baptista de Morais
*A título de exemplo, vejam esta e esta, realizadas com um dia de diferença.
sábado, 17 de outubro de 2015
Confidencial
Creio que existe, neste momento, uma enorme falta de seriedade ao lidar com matérias sigilosas/confidenciais. Na verdade, isto é confidencial é utilizado com alguma frequência como iniciador de conversa, já que expectavelmente gerará interesse do outro lado. Trabalhar com matérias confidenciais torna-se assim excitante e apelativo, quando na realidade seria desgastante se o dito sigilo fosse respeitado.
Pretendo aqui apenas chamar a atenção para o problema, sem pretensões de diagnóstico ou resolução. Até porque as razões que levam as pessoas a quebrar o sigilo em torno de algo variam drasticamente, desde a simples coscuvelhice até aos interesses económicos ou políticos. Não pretendo assim reflectir sobre o que poderia ser feito para atenuar estes abusos (e certamente que haveria muitas formas de o fazer) mas sim chamar a atenção para a leviandade com que os profissionais (e mesmo a restante população) encara o assunto.
Vou então falar de duas situações a meu ver ilustrativas do fenómeno: o recente escândalo em torno dos dados fiscais e uma mais subtil mas recorrente violação do sigilo médico.
Em relação à primeira não me refiro ao caso da lista VIP, mas sim à descoberta de que certas personalidade e celebridades reuniiam um número estranhamento elebado de consultas aos seus dados fiscais. Consultas essas que não eram, em grande parte, justificadas por necessidades profissionais. Confrontados com essa realidade, alguns funcionários prevaricadoress defenderam-se alegando que a consulta teria sido efectuada por mera curiosidade.
Ora bem, embora por um lado seja tranquilizador que a consulta não tenha sido efectuada por motivos mais sombrios (eg: vender os dados) não é por outro reconfortante saber que alguns funcionários colocam a sua curiosidade acima do segredo fiscal. Os dados são considerados sigilosos por alguma razão e, a não ser quando justificada por motivos profissionais, a sua consulta qualifica-se como abuso de poder.
Relativamente à segunda situação queria dividi-lo em duas questões separadas: tagarelice nos corredores e em casa e a relação dos hospitais com os media.
A primeira é relativamente inocente, mas ainda assim merecedora de atenção. Refiro-me ao "epá hoje tive este doente que fazia isto e acoloutro", tipicamente aplicado a hábitos estranhos e/ou ligados a questões sensíveis na nossa sociedade, como o sejam a sexualidade. Tipicamente não são referidos nomes (caso em que passaria de relativamente inocente a bastante grave) mas, no caso da tagarelice de corredor (no local de trabalho), não é obviamente difícil de descobrir quem é.
No caso doméstico o assunto é ainda mais inocente, já que mesmo neste mundo pequeno seria difícil descobrir a identidade do utente, mas ainda assim admito que poderia ser criticável enquanto risco desnecessário. Chamo no entanto a atenção para, no caso de celebridades, o sigilo médico ser descartado por completo e ser comum ver todo o tipo de profissionais de saúde a discutir as suas maleitas nos corredores e em casa. A título de exemplo, chegaram aos ouvidos de muitos Portugueses alguns dos hábitos e maleitas de Eusébio, durante o seu internamento. Há que ver que mesmo o mais inocente "esteve hoje no meu consultório o ..." é na minha opinião altamente reprovável já que, sabendo a especialidade do médico, se fica logo com uma ideia do tipo de problemas que a pessoa possa ter. A reflectir.
A segunda questão, mais grave e estranha na minha opinião, prende-se com as declarações aos jornalistas, por parte de profissionais de saúde e/ou administradores, à porta do Hospital. É tão comum como reprovável ver, em casos que involvem figuras públicas, médicos a falar da situação clínica do paciente aos jornalistas. Embora em alguns casos possa existir um consentimento do doente ou da família (vêm-me à cabeça os casos do Eusébio e de Maria Barroso) noutros penso que nem isso aconteceu (recordo-me por exemplo do recente caso da mão toxicodependente que fugiu da maternidade com o filho recém-nascido). Pessoalmente advogo que, mesmo com o consentimento do paciente ou família, não é o papel dos profissionais de saúde prestar declarações à imprensa sobre o caso clínico dos doentes a seu cargo.
Estes não são, como é óbvio, os únicos casos em que isto acontece, nem sequer os mais graves (veja-se por exemplo as recorrentes violações do segredo de justiça). Mas acho que são representativos da pouca importância que as pessoas dão ao carimbo sigiloso.
Para terminar, gostava de lançar para reflexão uma questão relativa à responsabilidade. Nos termos da lei, apenas comete um crime aquele que obtém e transmite informação confidencial. A sua consequente publicação e leitura já não é criminalizável. Pensemos a título de exemplo no recente caso o leak de documento confidenciais do Sporting, entre os quais o contrato de trabalho de Jorge Jesus. É considerado criminoso o hacker que obteve os dados e os disponibilizou inicialmente. Já não tem nada a recear o cidadão comum que, mesmo sabendo que os dados são confidenciais e foram obtidos de forma legítima, os vai consultar. Isto pode fazer sentido, já que seria muito difícil provar que a pessoa sabia que aquilo que ia consultar era sigiloso e tinha sido obtido de forma ilegal*. Mas também não são atrbuídas culpas aos meios de comunicação que, sabendo que o material é confidencial, o re-publicam e comentam. No caso do exemplo usado, muitos foram os comentários feitos pelos meios de comunicação social ao contrato de Jorge Jesus. Ora aqui não temos apenas um cidadão a consultar por mera curiosidade; temos organizações a aproveitarem-se de actos ilegais (praticados por outrém) para subir audiências e/ou ganhar dinheiro. Não poderia isto ser criminalizável?
Filipe Baptista de Morais
*De notar que este desconhecimento nada tem a ver com desconhecimento da legislação em vigor, que não serve de desculpa ao seu incumprimento.
Pretendo aqui apenas chamar a atenção para o problema, sem pretensões de diagnóstico ou resolução. Até porque as razões que levam as pessoas a quebrar o sigilo em torno de algo variam drasticamente, desde a simples coscuvelhice até aos interesses económicos ou políticos. Não pretendo assim reflectir sobre o que poderia ser feito para atenuar estes abusos (e certamente que haveria muitas formas de o fazer) mas sim chamar a atenção para a leviandade com que os profissionais (e mesmo a restante população) encara o assunto.
Vou então falar de duas situações a meu ver ilustrativas do fenómeno: o recente escândalo em torno dos dados fiscais e uma mais subtil mas recorrente violação do sigilo médico.
Em relação à primeira não me refiro ao caso da lista VIP, mas sim à descoberta de que certas personalidade e celebridades reuniiam um número estranhamento elebado de consultas aos seus dados fiscais. Consultas essas que não eram, em grande parte, justificadas por necessidades profissionais. Confrontados com essa realidade, alguns funcionários prevaricadoress defenderam-se alegando que a consulta teria sido efectuada por mera curiosidade.
Ora bem, embora por um lado seja tranquilizador que a consulta não tenha sido efectuada por motivos mais sombrios (eg: vender os dados) não é por outro reconfortante saber que alguns funcionários colocam a sua curiosidade acima do segredo fiscal. Os dados são considerados sigilosos por alguma razão e, a não ser quando justificada por motivos profissionais, a sua consulta qualifica-se como abuso de poder.
Relativamente à segunda situação queria dividi-lo em duas questões separadas: tagarelice nos corredores e em casa e a relação dos hospitais com os media.
A primeira é relativamente inocente, mas ainda assim merecedora de atenção. Refiro-me ao "epá hoje tive este doente que fazia isto e acoloutro", tipicamente aplicado a hábitos estranhos e/ou ligados a questões sensíveis na nossa sociedade, como o sejam a sexualidade. Tipicamente não são referidos nomes (caso em que passaria de relativamente inocente a bastante grave) mas, no caso da tagarelice de corredor (no local de trabalho), não é obviamente difícil de descobrir quem é.
No caso doméstico o assunto é ainda mais inocente, já que mesmo neste mundo pequeno seria difícil descobrir a identidade do utente, mas ainda assim admito que poderia ser criticável enquanto risco desnecessário. Chamo no entanto a atenção para, no caso de celebridades, o sigilo médico ser descartado por completo e ser comum ver todo o tipo de profissionais de saúde a discutir as suas maleitas nos corredores e em casa. A título de exemplo, chegaram aos ouvidos de muitos Portugueses alguns dos hábitos e maleitas de Eusébio, durante o seu internamento. Há que ver que mesmo o mais inocente "esteve hoje no meu consultório o ..." é na minha opinião altamente reprovável já que, sabendo a especialidade do médico, se fica logo com uma ideia do tipo de problemas que a pessoa possa ter. A reflectir.
A segunda questão, mais grave e estranha na minha opinião, prende-se com as declarações aos jornalistas, por parte de profissionais de saúde e/ou administradores, à porta do Hospital. É tão comum como reprovável ver, em casos que involvem figuras públicas, médicos a falar da situação clínica do paciente aos jornalistas. Embora em alguns casos possa existir um consentimento do doente ou da família (vêm-me à cabeça os casos do Eusébio e de Maria Barroso) noutros penso que nem isso aconteceu (recordo-me por exemplo do recente caso da mão toxicodependente que fugiu da maternidade com o filho recém-nascido). Pessoalmente advogo que, mesmo com o consentimento do paciente ou família, não é o papel dos profissionais de saúde prestar declarações à imprensa sobre o caso clínico dos doentes a seu cargo.
Estes não são, como é óbvio, os únicos casos em que isto acontece, nem sequer os mais graves (veja-se por exemplo as recorrentes violações do segredo de justiça). Mas acho que são representativos da pouca importância que as pessoas dão ao carimbo sigiloso.
Para terminar, gostava de lançar para reflexão uma questão relativa à responsabilidade. Nos termos da lei, apenas comete um crime aquele que obtém e transmite informação confidencial. A sua consequente publicação e leitura já não é criminalizável. Pensemos a título de exemplo no recente caso o leak de documento confidenciais do Sporting, entre os quais o contrato de trabalho de Jorge Jesus. É considerado criminoso o hacker que obteve os dados e os disponibilizou inicialmente. Já não tem nada a recear o cidadão comum que, mesmo sabendo que os dados são confidenciais e foram obtidos de forma legítima, os vai consultar. Isto pode fazer sentido, já que seria muito difícil provar que a pessoa sabia que aquilo que ia consultar era sigiloso e tinha sido obtido de forma ilegal*. Mas também não são atrbuídas culpas aos meios de comunicação que, sabendo que o material é confidencial, o re-publicam e comentam. No caso do exemplo usado, muitos foram os comentários feitos pelos meios de comunicação social ao contrato de Jorge Jesus. Ora aqui não temos apenas um cidadão a consultar por mera curiosidade; temos organizações a aproveitarem-se de actos ilegais (praticados por outrém) para subir audiências e/ou ganhar dinheiro. Não poderia isto ser criminalizável?
Filipe Baptista de Morais
*De notar que este desconhecimento nada tem a ver com desconhecimento da legislação em vigor, que não serve de desculpa ao seu incumprimento.
domingo, 11 de outubro de 2015
Legislativas: debates
Este texto pretende ser o primeiro de uma série (não necessariamente seguida) em torno das eleições legislativas. Bem sei que vem um pouco atrasado, mas talvez seja melhor visto que assim temos não só mais material para comentar como um maior distanciamento para melhor comentar tudo o que passou em torno do tema,
Pois bem, na minha opinião os debates entre os diversos candidatos a primeiro-ministro ficaram abaixo das expectativas em toda a linha, às vezes por culpa dos intervenientes, outras dos moderadores e ainda outras por culpa da organização (ie: canal televisivo ou estação de rádio, etc...).
A primeira crítica que tenho de fazer é ao facto de nem todos os candidatos terem tido direito ao debate televisivo (apenas os que já tinham assento parlamentar), com a agravante de os debates entre os partidos mais pequenos não terem sido transmitidos em canal aberto. Bem sei que isto resultou da legislação em torno das campanhas, revista há poucos meses, assimo como às negociações entre os partidos e os meios de comunicação, mas isso não a torna imune à crítica (apenas transfere a culpa para a dita legislação. Como vou escrever um texto inteiramente dedicado à legislação em torno das campanhas não vou aqui aprofundar o assunto.
Em seguida, tenho de criticar o enquadramento dado aos debates. A linguagem utilizada nos meios de comunicação social para se referirem a eles era a de um encontro de boxe: era o debate de x contra y, era o vencedor/derrotado do debate, etc... Ora a ideia de um debate não é ganhar nem perder; é, isso sim, discutir ideias de modo a que os espectadores possam decidir com quais se identificam mais. Na realidade a única situação em que poderia ser legítimo usar esses termos seria se um seus intervenientes conseguisse convencer os outros da superioridade das suas ideias, terminando o debate com um "epá, de facto, parece-me que isso faz mais sentido, vou retirar-me cda corrida e passar a apoiar a tua candidatura".
Outra coisa que não consigo perceber é o porquê de uma duração tão curta para os debates (sendo que apenas se realizam um ou dois entre cada par de candidatos). Na realidade, sou contra a existência de uma duração fixa de todo. Isso leva a que, quando não querem responder a uma questão, os intervenientes se limitem a divagar sobre outros assuntos durantes uns minutos até o jornalista lhe dizer que estão sem tempo e que têm de mudar de tema (eg: Portas usou e abusou desta estratégia no debate com (e não contra) Catarina Martins. Permite ainda, aliado aos cronómetros que contam o tempo de intervenção de cada político (não estaríamos melhor sem eles já agora?) que se façam intervenções polémicas e/ou se lancem farpas quando sabemos que o opositor já não vai ter tempo de resposta* (eg: a intervenção de Costa a respeito das dívidas da Câmara de Lisboa no final do debate com Passos Coelho). Mas o pior mesmo é que força os jornalistas a interromper constantemente os debates, por vezes quando se estão a discutir temas importantes, dizendo que não há tempo ou que é preciso passar ao próximo tema. Estas intromissões foram uma constante no primeiro debate Passos-Costa, com grande pena minha. E para quê? O que é que a televisão teria de tão importante para transmitir que não permitisse alargar o debate um segundo? Eu respondo: umas ridículas e ofensivas (para o jornalismo) questões finais (já lá vamos), assim como dar tempo de antena a uma horda interminável de comentadores políticos que se vão debruçar sobre.... o debate. Quando passa mais tempo a discutir um debate do que a duração do mesmo é porque algo está claramente mal.
Vamos então analisar as questões finais do debate Costa-Passos. Não só para mostrar porque é que, na minha opinião, não justificavam a interrupção prematura do debate em si, mas também porque acho serem representativas de uma certa podridão jornalística.
O facto de os jornalistas terem decretado um (curto) tempo para as respostas revela muito sobre o seu real propósito: não o de esclarecer os Portugueses sobre seja o que for, mas sim tentar extrair uma frase ou expressão mais infeliz (um "caso") para colocar nas manchetes e repetir até à exaustão. Mais, nota-se pelo tipo de questões e pela forma como foram feitas que têm o intuito de entalar os entrevistados (destaque aqui para as perguntas de Clara de Sousa). Isto não é surpreendente já que muitas pessoas (incluindo muitos jornalistas mas não só) consideram que conseguir entalar um entrevistado é sinal de bom jornalismo. Mas a verdade é que apenas o é quando isso leva a (ou pelo menos tenta) que o entrevistado esclareça ou clarifique alguma posição mais controversa. Entalar um político com uma questão irrelevante (eg: a 1ª) ou parva (eg: a 5ª e a 6ª) é somente irrelevante.
Resumindo, defendo a existência de um maior número de debates e que incluam todos os candidatos nas legislativas, se necessário for abdicando do formato de frente-frente (ie: recorrendo a debate com três ou quatro participantes). A desculpa do tempo de antena e dos custos associados não cola visto que dispomos de uma canal estatal que pode e deve assegurar a transmissão de eventos com interesse nacioal; resolvia-se também assim o problema das transmissões em canais fechados. A extensão dos debates devia ser maior e menos rígida, sendo que provavelmente o melhor seria partir os debates por temas (visto que também não é razoável fazer um debate de 3 ou 5 horas seguidas). Por último, acho que é imperativo que os moderadores deixem de tentar gerar conteúdo para tablóides e se concentrem em conseguir que os Portugueses saiam dos debates mais esclarecidos.
Filipe Baptista de Morais
* Isto acontece também frequentemente no Parlamento.
Pois bem, na minha opinião os debates entre os diversos candidatos a primeiro-ministro ficaram abaixo das expectativas em toda a linha, às vezes por culpa dos intervenientes, outras dos moderadores e ainda outras por culpa da organização (ie: canal televisivo ou estação de rádio, etc...).
A primeira crítica que tenho de fazer é ao facto de nem todos os candidatos terem tido direito ao debate televisivo (apenas os que já tinham assento parlamentar), com a agravante de os debates entre os partidos mais pequenos não terem sido transmitidos em canal aberto. Bem sei que isto resultou da legislação em torno das campanhas, revista há poucos meses, assimo como às negociações entre os partidos e os meios de comunicação, mas isso não a torna imune à crítica (apenas transfere a culpa para a dita legislação. Como vou escrever um texto inteiramente dedicado à legislação em torno das campanhas não vou aqui aprofundar o assunto.
Em seguida, tenho de criticar o enquadramento dado aos debates. A linguagem utilizada nos meios de comunicação social para se referirem a eles era a de um encontro de boxe: era o debate de x contra y, era o vencedor/derrotado do debate, etc... Ora a ideia de um debate não é ganhar nem perder; é, isso sim, discutir ideias de modo a que os espectadores possam decidir com quais se identificam mais. Na realidade a única situação em que poderia ser legítimo usar esses termos seria se um seus intervenientes conseguisse convencer os outros da superioridade das suas ideias, terminando o debate com um "epá, de facto, parece-me que isso faz mais sentido, vou retirar-me cda corrida e passar a apoiar a tua candidatura".
Outra coisa que não consigo perceber é o porquê de uma duração tão curta para os debates (sendo que apenas se realizam um ou dois entre cada par de candidatos). Na realidade, sou contra a existência de uma duração fixa de todo. Isso leva a que, quando não querem responder a uma questão, os intervenientes se limitem a divagar sobre outros assuntos durantes uns minutos até o jornalista lhe dizer que estão sem tempo e que têm de mudar de tema (eg: Portas usou e abusou desta estratégia no debate com (e não contra) Catarina Martins. Permite ainda, aliado aos cronómetros que contam o tempo de intervenção de cada político (não estaríamos melhor sem eles já agora?) que se façam intervenções polémicas e/ou se lancem farpas quando sabemos que o opositor já não vai ter tempo de resposta* (eg: a intervenção de Costa a respeito das dívidas da Câmara de Lisboa no final do debate com Passos Coelho). Mas o pior mesmo é que força os jornalistas a interromper constantemente os debates, por vezes quando se estão a discutir temas importantes, dizendo que não há tempo ou que é preciso passar ao próximo tema. Estas intromissões foram uma constante no primeiro debate Passos-Costa, com grande pena minha. E para quê? O que é que a televisão teria de tão importante para transmitir que não permitisse alargar o debate um segundo? Eu respondo: umas ridículas e ofensivas (para o jornalismo) questões finais (já lá vamos), assim como dar tempo de antena a uma horda interminável de comentadores políticos que se vão debruçar sobre.... o debate. Quando passa mais tempo a discutir um debate do que a duração do mesmo é porque algo está claramente mal.
Vamos então analisar as questões finais do debate Costa-Passos. Não só para mostrar porque é que, na minha opinião, não justificavam a interrupção prematura do debate em si, mas também porque acho serem representativas de uma certa podridão jornalística.
- José Sócrates manifestou-lhe publicamente apoio, Agradece esse apoio e vai fazê-lo pessoalmente? - Judite Sousa (JS) para António Costa (AC). Reiterou segundos depois o pedidode que Costa respondesse à segunda parte da pergunta (se iria agradecer pessoalmente),
- Demite-se da liderança do partido se perder? - João Adelino Faria (JF) para Passos Coelho. De seguida colocou a mesma pergunta a António Costa.
- Existindo na área do PS um candidato e uma militante e ex-presidente do PS, esta circunstância pode vir a dividir o PS? - JS para AC.
- Definiu aquilo que foi considerado na altura o perfil do candidato presidencial na moção que apresentou ao 35º Congresso do PSD. Ora perfilando-se como candidatos o ex-lider do PSD e o ex-presidente da 2ª maior Câmara do país, mantém o que disse no congresso do PSD? - JS para PC. Mais uma vez repetiu a pergunta, após Passos Coelho ter educadamente apontado a irrelevância da mesma (e ainda assim ter respondido).
- Há algo de que se arrependa de ter feito nos últimos quatro anos enquanto primeiro-ministro? Rápido. Que se arrependa, não que tivesse feito diferente, que se arrependa. - Clara de Sousa (CS) para PC.
- Há algo de que se arrependa de ter feito ou dito no último ano enquanto líder do maior partido da oposição? - CS para AC.
O facto de os jornalistas terem decretado um (curto) tempo para as respostas revela muito sobre o seu real propósito: não o de esclarecer os Portugueses sobre seja o que for, mas sim tentar extrair uma frase ou expressão mais infeliz (um "caso") para colocar nas manchetes e repetir até à exaustão. Mais, nota-se pelo tipo de questões e pela forma como foram feitas que têm o intuito de entalar os entrevistados (destaque aqui para as perguntas de Clara de Sousa). Isto não é surpreendente já que muitas pessoas (incluindo muitos jornalistas mas não só) consideram que conseguir entalar um entrevistado é sinal de bom jornalismo. Mas a verdade é que apenas o é quando isso leva a (ou pelo menos tenta) que o entrevistado esclareça ou clarifique alguma posição mais controversa. Entalar um político com uma questão irrelevante (eg: a 1ª) ou parva (eg: a 5ª e a 6ª) é somente irrelevante.
Resumindo, defendo a existência de um maior número de debates e que incluam todos os candidatos nas legislativas, se necessário for abdicando do formato de frente-frente (ie: recorrendo a debate com três ou quatro participantes). A desculpa do tempo de antena e dos custos associados não cola visto que dispomos de uma canal estatal que pode e deve assegurar a transmissão de eventos com interesse nacioal; resolvia-se também assim o problema das transmissões em canais fechados. A extensão dos debates devia ser maior e menos rígida, sendo que provavelmente o melhor seria partir os debates por temas (visto que também não é razoável fazer um debate de 3 ou 5 horas seguidas). Por último, acho que é imperativo que os moderadores deixem de tentar gerar conteúdo para tablóides e se concentrem em conseguir que os Portugueses saiam dos debates mais esclarecidos.
Filipe Baptista de Morais
* Isto acontece também frequentemente no Parlamento.
sábado, 26 de setembro de 2015
Breaking News: médicos poderão ser humanos
Há dias deparei-me com uma notícia no jornal Expresso sob o título "Privação de sono nos médicos pode afectar atendimento aos doentes". Para uma conclusão tão óbvia penso que poderia remover o hipotético pode; ainda assim abri a notícia com algum interesse, julgando tratar-se de algum testemunho clínico sobre más decisões tomadas em cima de uma noite não/mal dormida.
Mas não. A notícia refere antes um estudo que, após avaliação de 18 jovens médicos, concluíu que a privação de sono leva a um declínio nos níveis de concentração, pior resposta a estímulos e menor velocidade de reacção face aos mesmos. Pois bem, isto seria muito interessante se não fosse já mais que sabido. Eu pelo menos sei que quando faço directas não me consigo concentrar tão bem. A minha mãe sabia-o quando me dizia para não me deitar tarde em dias de escola. O IMTT sabe-o quando alerta para o aumento do tempo de reacção com o cansaço. Os pilotos sabem-no. Que raio, até as seguradoras médicas o sabem e não se responsabilizam por erros médicos cometidos após mais de x horas de trabalho consecutivas. Mas, aparentemente, a comunidade científica não o sabia.
Logo no início da notícia o estudo é referido como "o primeiro estudo feito em Portugal sobre os efeitos de privação de sono nos médicos". Talvez esteja aqui o problema; apesar de estar mais que demonstrado que as pessoas têm certas capacidades diminuídas com o cansaço tal efeito nunca tinha sido estudado em médicos Portugueses. Mas há que perceber que os médicos são pessoas e Portugal fica no planeta Terra, e que portanto considerações mais genéricas também se lhes aplicam. É que senão arriscamo-nos a, daqui a duas semanas, estarmos a perder mais tempo (e recursos e dinheiro) a investigar se o cansaço também afecta engenheiros Italianos. (De referir ainda que existe obviamente na literatura estudos sobre os efeitos da privação do sono com amostras um bocadinho melhores que dezoito pessoas*).
Dito isto, tenho que concordar com as sugestões apresentadas no mesmo estudo, face às conclusões a que chegaram **. Seria interessante estudar a possibilidade de escalonar os médicos em turnos mais curtos, como penso ser o caso dos enfermeiros. Suponho que seja mais difícil, visto que há menos médicos que enfermeiros e as logísticas de escalonamento tornam-se mais complicadas em grupos pequenos. Mas, a ser exequível, o utente teria muito a ganhar.
Filipe Baptista de Morais
*Em defesa do estudo, há que dizer que pode ter sido simplesmente mal noticiado. O artigo refere que compararam médicos que faziam trabalho nocturno com outros que não o faziam, mas não diziam quando os testes eram realizados (ie: se na manhã seguinte ou se em qualquer altura aleatória). Também nada dizem sobre a magnitude dos efeitos observados. É, portanto, possível que o estudo seja mais interessante do que aqui faço parecer mas, dado que não fornecem meios para que possa consultar o original (nem sequer referem o título do estudo) a minha análise teve que se basear no conteúdo da notícia em si.
** Na realidade, arriscaria dizer que o estudo em si não passou de um pretexto para poderem divulgar essas sugestões.
Mas não. A notícia refere antes um estudo que, após avaliação de 18 jovens médicos, concluíu que a privação de sono leva a um declínio nos níveis de concentração, pior resposta a estímulos e menor velocidade de reacção face aos mesmos. Pois bem, isto seria muito interessante se não fosse já mais que sabido. Eu pelo menos sei que quando faço directas não me consigo concentrar tão bem. A minha mãe sabia-o quando me dizia para não me deitar tarde em dias de escola. O IMTT sabe-o quando alerta para o aumento do tempo de reacção com o cansaço. Os pilotos sabem-no. Que raio, até as seguradoras médicas o sabem e não se responsabilizam por erros médicos cometidos após mais de x horas de trabalho consecutivas. Mas, aparentemente, a comunidade científica não o sabia.
Logo no início da notícia o estudo é referido como "o primeiro estudo feito em Portugal sobre os efeitos de privação de sono nos médicos". Talvez esteja aqui o problema; apesar de estar mais que demonstrado que as pessoas têm certas capacidades diminuídas com o cansaço tal efeito nunca tinha sido estudado em médicos Portugueses. Mas há que perceber que os médicos são pessoas e Portugal fica no planeta Terra, e que portanto considerações mais genéricas também se lhes aplicam. É que senão arriscamo-nos a, daqui a duas semanas, estarmos a perder mais tempo (e recursos e dinheiro) a investigar se o cansaço também afecta engenheiros Italianos. (De referir ainda que existe obviamente na literatura estudos sobre os efeitos da privação do sono com amostras um bocadinho melhores que dezoito pessoas*).
Dito isto, tenho que concordar com as sugestões apresentadas no mesmo estudo, face às conclusões a que chegaram **. Seria interessante estudar a possibilidade de escalonar os médicos em turnos mais curtos, como penso ser o caso dos enfermeiros. Suponho que seja mais difícil, visto que há menos médicos que enfermeiros e as logísticas de escalonamento tornam-se mais complicadas em grupos pequenos. Mas, a ser exequível, o utente teria muito a ganhar.
Filipe Baptista de Morais
*Em defesa do estudo, há que dizer que pode ter sido simplesmente mal noticiado. O artigo refere que compararam médicos que faziam trabalho nocturno com outros que não o faziam, mas não diziam quando os testes eram realizados (ie: se na manhã seguinte ou se em qualquer altura aleatória). Também nada dizem sobre a magnitude dos efeitos observados. É, portanto, possível que o estudo seja mais interessante do que aqui faço parecer mas, dado que não fornecem meios para que possa consultar o original (nem sequer referem o título do estudo) a minha análise teve que se basear no conteúdo da notícia em si.
** Na realidade, arriscaria dizer que o estudo em si não passou de um pretexto para poderem divulgar essas sugestões.
terça-feira, 18 de agosto de 2015
Cultura Snob
Este texto surge como um comentário ao artigo de Henrique Monteiro no Expresso, intitulado Um elogio da CNB à Gulbenkian. E à classe média.
Aparentemente o jornalista foi assistir a uma atuação da Companhia Nacional de Bailado e adorou, achando depois por bem elogiar a dita e recomendá-la a todos os seus leitores. Nada contra. O que venho aqui criticar é a visão snob da cultura, assim como algum alheameanto da realidade, que me parece transparecer ao longo do texto.
Comecemos pelo snobismo. Henrique Monteiro considerou o espectáculo a que assistiu um elogio à class média porque "(...) é ela que prova que, desde que o acesso lhe seja possibilitado (neste caso é gratuito), adora ver dança, teatro ou música de grande qualidade (e não os programas para mentecaptos que algumas estações televisivas produzem)". Fica pois claro que é louvável gostarmos de dança, teatro ou música (não esquecer o de grande qualidade, já que neste capítulo penso que apenas se referiria à clássica) e criticável assistir aos tais programas de televisão (embora não particularize, assumo que se refere a programas como Casa dos Segredos e Tardes da Júlia).
Mas, pergunto eu, porquê? Assisstir a um bailado fará de mim uma pessoa melhor ou mais inteligente? Esta adulação das artes clássicas (ópera, teatro, bailado, etc...) em detrimento de formas de entretenimento mais populares (programas de televisão, jogos de futebol, jogos de computador, etc...) não é mais do que uma tentativa colectiva (e, espero, sub-consciente) da parte dos seus apreciadores de se sentirem superiores à restante população. Vai muito de encontro ao agora sobejamente difundido conceito de arte difícil, que justifica o desagrado que alguém sente perante uma obra de arte considerada genial pelos peritos como mera ignorância ou preguiça. Uma obra (pode ser um quadro, uma composição musical etc...) elevada a este patamar tem uma série de benefícios: para além de aqueles que verdadeiramente a apreciam (que serão, naturalmente, poucos já que que se trata de arte difícil) a obra receberá elogios de muitos outros que, por receio de exclusão social (eg: serem considerados mentecaptos) não se atreverão a expressar a sua verdadeira opinião sobre ela. Finalmente, todos aqueles que a repudiarem verão as suas opiniões descartadas como inválidas por desconhecimento ou falta de hábito. A obra é assim, de certa forma, elevada por unanimidade já que os seuscríticos simplesmente ainda não desenvolveram as competências e capacidades necessárias à sua verdadeira apreciação. A enologia e a gastronomia gourmet também já começam a dar os primeiros passos nesse sentido.
A verdade é que o Mundo não ficará melhor por eu ir assistir a uma atuação da CNB em detrimento do Benfica-Sporting. Nem o meu (des)gosto por bailado diz algo sobre a minha capacidade intelectual ou sobre o meu carácter (pode dizer, isso sim, muito sobre o meu estrato social, fundamentalmente devido ao fenómeno de pressão social que explicitei no parágrafo anterior).
É óbvio que Henrique Monteiro (e muitos outros) discordaria de mim. O parágrafo imediatamente abaixo ao citado demonstra-o bem. No entanto, o que vou dizer a seguir é mais uma constatação do que uma análise, pelo que espero ser mais consensual.
É que, por muito que os eruditos desejam o contrário, a classe média não adora ver dança, teatro ou música, a não ser que esta última se refira ao Justin Bieber e a primeira ao Dança com as Estrelas. A realidade é que são os estádios de futebol de que atraem dezenas de milhares todas as semanas, são os programas para mentecaptos que têm audiências de milhões (e sim, a classe média também faz parte desses milhões). Até porque, vejamos, se considerássemos que são apenas as classes baixas que enchem os estádios de futebol (com bilhetes tipicamente à volta de 10-30 euros) então certamente que a classe média não se importaria de pagar o dobro ou o triplo pelos seus passatempos intelectuais.
Dizer que a classe média adora ver essas actividades "desde que o acesso lhe seja possibilitado" não faz, portanto qualquer sentido. Os espaços existem e condições económicas para pagar a actuação também. O que falta é mesmo vontade de ir. Diria até que as enchentes que o jornalista refer não se devem de todo ao facto das actuações serem gratuitas, mas sim por estarem inseridas no Festival ao Largo, um evento da moda. Arriscaria dizer que a maioria dos espectadores estava mais interessada em marcar presença e contar aos amigos que lá tinha ido do que propriamente na atuação.
Ligar o teatro e o bailado à identidade do Português revela um ainda maior alheamento da realidade: o Tuga tem muito mais que ver com futebol do que com qualquer uma das duas.
Assim, com todo o mérito que a actuação da CNB possa ter tido, não vejo nela qualquer elogio à classe média. Já nas palavras do jornalista vejo um claro (embora involuntário) insulto à mesma.
Aparentemente o jornalista foi assistir a uma atuação da Companhia Nacional de Bailado e adorou, achando depois por bem elogiar a dita e recomendá-la a todos os seus leitores. Nada contra. O que venho aqui criticar é a visão snob da cultura, assim como algum alheameanto da realidade, que me parece transparecer ao longo do texto.
Comecemos pelo snobismo. Henrique Monteiro considerou o espectáculo a que assistiu um elogio à class média porque "(...) é ela que prova que, desde que o acesso lhe seja possibilitado (neste caso é gratuito), adora ver dança, teatro ou música de grande qualidade (e não os programas para mentecaptos que algumas estações televisivas produzem)". Fica pois claro que é louvável gostarmos de dança, teatro ou música (não esquecer o de grande qualidade, já que neste capítulo penso que apenas se referiria à clássica) e criticável assistir aos tais programas de televisão (embora não particularize, assumo que se refere a programas como Casa dos Segredos e Tardes da Júlia).
Mas, pergunto eu, porquê? Assisstir a um bailado fará de mim uma pessoa melhor ou mais inteligente? Esta adulação das artes clássicas (ópera, teatro, bailado, etc...) em detrimento de formas de entretenimento mais populares (programas de televisão, jogos de futebol, jogos de computador, etc...) não é mais do que uma tentativa colectiva (e, espero, sub-consciente) da parte dos seus apreciadores de se sentirem superiores à restante população. Vai muito de encontro ao agora sobejamente difundido conceito de arte difícil, que justifica o desagrado que alguém sente perante uma obra de arte considerada genial pelos peritos como mera ignorância ou preguiça. Uma obra (pode ser um quadro, uma composição musical etc...) elevada a este patamar tem uma série de benefícios: para além de aqueles que verdadeiramente a apreciam (que serão, naturalmente, poucos já que que se trata de arte difícil) a obra receberá elogios de muitos outros que, por receio de exclusão social (eg: serem considerados mentecaptos) não se atreverão a expressar a sua verdadeira opinião sobre ela. Finalmente, todos aqueles que a repudiarem verão as suas opiniões descartadas como inválidas por desconhecimento ou falta de hábito. A obra é assim, de certa forma, elevada por unanimidade já que os seuscríticos simplesmente ainda não desenvolveram as competências e capacidades necessárias à sua verdadeira apreciação. A enologia e a gastronomia gourmet também já começam a dar os primeiros passos nesse sentido.
A verdade é que o Mundo não ficará melhor por eu ir assistir a uma atuação da CNB em detrimento do Benfica-Sporting. Nem o meu (des)gosto por bailado diz algo sobre a minha capacidade intelectual ou sobre o meu carácter (pode dizer, isso sim, muito sobre o meu estrato social, fundamentalmente devido ao fenómeno de pressão social que explicitei no parágrafo anterior).
É óbvio que Henrique Monteiro (e muitos outros) discordaria de mim. O parágrafo imediatamente abaixo ao citado demonstra-o bem. No entanto, o que vou dizer a seguir é mais uma constatação do que uma análise, pelo que espero ser mais consensual.
É que, por muito que os eruditos desejam o contrário, a classe média não adora ver dança, teatro ou música, a não ser que esta última se refira ao Justin Bieber e a primeira ao Dança com as Estrelas. A realidade é que são os estádios de futebol de que atraem dezenas de milhares todas as semanas, são os programas para mentecaptos que têm audiências de milhões (e sim, a classe média também faz parte desses milhões). Até porque, vejamos, se considerássemos que são apenas as classes baixas que enchem os estádios de futebol (com bilhetes tipicamente à volta de 10-30 euros) então certamente que a classe média não se importaria de pagar o dobro ou o triplo pelos seus passatempos intelectuais.
Dizer que a classe média adora ver essas actividades "desde que o acesso lhe seja possibilitado" não faz, portanto qualquer sentido. Os espaços existem e condições económicas para pagar a actuação também. O que falta é mesmo vontade de ir. Diria até que as enchentes que o jornalista refer não se devem de todo ao facto das actuações serem gratuitas, mas sim por estarem inseridas no Festival ao Largo, um evento da moda. Arriscaria dizer que a maioria dos espectadores estava mais interessada em marcar presença e contar aos amigos que lá tinha ido do que propriamente na atuação.
Ligar o teatro e o bailado à identidade do Português revela um ainda maior alheamento da realidade: o Tuga tem muito mais que ver com futebol do que com qualquer uma das duas.
Assim, com todo o mérito que a actuação da CNB possa ter tido, não vejo nela qualquer elogio à classe média. Já nas palavras do jornalista vejo um claro (embora involuntário) insulto à mesma.
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