domingo, 7 de dezembro de 2014

O Irrelevante da Questão

A detenção de Sócrates colocou os meios de comunicação Portugueses alvoroço, tendo direito a presença diária nos jornais, seja em papel ou em formato electrónico ou televisivo. Aqui nada de estranho; trata-se, afinal, da detenção de um ex primeiro ministro por suspeitas de branqueamento de capitais, fraude fiscal e, a meu ver mais relevante para o interesse público, corrupção. É importante natural, e até de louvar, que a Imprensa tente chegar ao cerne da questão*.

Mas será isso que está a acontecer? Vou fazer um pequeno apanhado das "notícias" e factos interessantes com que me brindaram sobre o caso. A primeira refeição de Sócrates na prisão foi cozido à Portuguesa. A cela de Sócrates não tem água quente. A cela de Sócrates encontra-se no sector feminino da prisão. O actual namorado da ex-mulher levou-lhe um casaco, porque está frio. Isto tudo estaria muito bem se fosse relatado na Caras, ou se se tratasse de um qualquer jornal particularmente incompetente na avaliação da relevância de conteúdos. No entanto, se se derem ao trabalho de clicar nos links, notarão que cada um leva a um jornal diferente. É verdade, parece que a roupa, o almoço, e a temperatura da água do duche de José Sócrates são considerados como merecedores de serem noticiados por todos os meios de comunicação Portugueses.

Para além das referidas acima, somos ainda todos os dias bombardeados com notícias sobre quem foi visitar Sócrates nesse dia, e se o chamou animado ou abatido. Todas estas pecam pela irrelevância. Ainda pior, na minha opinião, são os mexericos maliciosos (que muito dificilmente passarão por notícia, mesmo para os mais distraídos) com que têm tentado enlamear ainda mais o seu nome, como por exemplo o preço da sua casa em Pariso facto de fazer compras em lojas caras e as fracas vendas do seu livro (por acaso já li e não achei nada de especial, para os interessados). E sim, são ainda mais três meios de comunicação diferentes. A parcialidade de pivots de jornal a comentar (é este o termo técnico, e não noticiar como por vezes se diz) o caso é gritante e uma vergonha para o jornalismo nacional (a começar por José Rodrigues dos Santos, que por já agora aproveito para opinar que escreve bastante bem).

O que interessa nisto tudo compreender é se facto existiu corrupção e abuso de poderes. Mas disso pouco se fala, até porque os jornalistas ainda nada devem saber sobre o assunto. E ainda bem, já que é sinal de que, pelo menos nesta fase, existe algum segredo de justiça. De mencionar ainda aquela que parece ser a atitude de grande parte da população (não vamos perder tempo a esmiuçar pessoas com relevância políticas a escrever "yupii" e derivados no facebook). Ao invés de ficarmos preocupados com o facto de que um alto-governante que conseguiu ser eleito (eleito sim, por muito que toda a gente pareça pensar que foi alguma espécia de usuarpador) por duas vezes (uma delas com maioria absoluta) possa ter estado envolto em corrupção e desvio de fundos, parece que toda a gente entrou num estado de júbilo e exaltação. O comentário mais comum até deve ser "espero que muitos mais o sigam". Que a opinião geral seja a de que todas os governantes são corruptos e ladrões é preocupantes. Que isso não tenha aparente correspondência na nossa direcção de voto é ainda mais.


Filipe Baptista de Morais

* Há uma diferença, não tão subtil quanto por vezes nos querem fazer crer, entre noticiar um caso policial e violar o segredo de justiça. A primeira trata-se de um trabalho de investigação e divulgação de um jornalista, sendo que a segunda requere necessariamente o envolvimento de um dos intervenientes no processo (polícias, procuradores, juízes, etc...). Creio que, num certo sentido, a violação do segredo de justiça não é portanto da responsabilidade do jornalista, mas sim dos seus informadores. Esta tem sido flagrante ao longo do caso (a começar pela presença de meios comunicação no momento da detenção) e é grave o suficiente para merecer uma investigação séria.