segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Legislativas: as sondagens

Este ano tivemos direito a dose reforçada de sondagens, com pelo menos duas entidades a realizá-las diariamente. Estas proporcionam-nos sempre algum divertimento, com os partidos que aparecem à frente a vangloriarem-se (toma, toma, eu tenho mais amigos do que tu!) e os que aparecem atrás a insinuar que estas são manipuladas e/ou a desvalorizá-las, dizendo que fazem as suas próprias sondagens na rua (e estas são invariavelmente positivas).

Pessoalmente, não acredito que as sondagens sejam manipuladas. Até porque, tendo esse poder, um político corrupto não saberia o que fazer com ele. Por exemplo, imaginemos que António Costa tinha o poder de encomendar uma sondagem com o resultado que quisesse. O que escolheria? Uma vitória clara do PS, para gerar dinâmica e motivar os indecisos a votar PS? Um empate técnico com a PAF, para apelar a que nenhum dos seus simpatizantes fique em casa? Ou uma vitória clara da PAF, para assim apelar ao voto útil? A resposta é difícil (as reacções dos eleitores são bastante imprevisíveis) pelo que não acredito que nenhum partido se desse a esse trabalho (e corresse o risco de ser apanhado) sem garantias de que isso tivesse uma influência positivas nas intenções de voto.

Outra coisa engraçada nas sondagens é ver como não encaixam nos intervalos de confiança umas das outras*. E no entanto continua-se a utilizar alegremente termos como erro máximo da amostra, por vezes sem referir sequer o intervalo de confiança correspondente. Para quem não está muito por dentro de estatística isso deveria dar logo um aviso relativamente ao verdadeiro significado desses números.

Apesar do referido acima, talvez o leitor tenha reparado que as sondagens efectuadas pela mesma entidade se mantêm relativamente constantes ao longo do tempo. Isto deve-se ao facto (pouco noticiado) se utilizarem o esquema conhecido por tracking poll, em que a amostra é sempre a mesma (ie: telefonam sempre às mesmas pessoas). Neste caso em concreto penso que iam substituindo uma parte da amostra a cada nova sondagem, mas mantendo o grosso da mesma constante. É assim facilmente perceptível como uma entidade obtém resultados consistentes entre si ao longo do tempo mas inconsistentes com as sondagens de outras entidades. Este tipo de sondagem serve assim essencialmente para medir tendências de alteração de voto, e o facto de se fazerem N sondagens (com a mesma amostra) não aumente a fiabilidade das mesmas, como intuitivamente seria de esperar.

Não podia deixar de fazer aqui uma enorme crítica a todas as entidades responsáveis por sondagens por não terem incluído todos os partidos candidatos nas mesmas. Não custava nada e ajudava a combate a ideia (algo fundamentada na minha opinião) de que a comunicação social favorece imenso os partidos mais conhecidos e discrimina os recém-chegados.

Finalmente, um pequeno apontamento em relação à sua utilizadade que é, a meu ver, nenhuma. Excepto talvez como entretenimento. Pior, o tempo de antena que se gasta a mostrar resultados de sondagens e posteriormente a analisá-los e comentá-los é tempo não usado para exposição e clarificação de propostas políticas. Assim sendo, não vejo porque razão se há-de utilizar fundos públicos (a partir da RTP) para financiar sondagens. O privado que se entretenha com isso.


Filipe Baptista de Morais



*A título de exemplo, vejam esta e esta, realizadas com um dia de diferença.

sábado, 17 de outubro de 2015

Confidencial

Creio que existe, neste momento, uma enorme falta de seriedade ao lidar com matérias sigilosas/confidenciais. Na verdade, isto é confidencial é utilizado com alguma frequência como iniciador de conversa, já que expectavelmente gerará interesse do outro lado. Trabalhar com matérias confidenciais torna-se assim excitante e apelativo, quando na realidade seria desgastante se o dito sigilo fosse respeitado.

Pretendo aqui apenas chamar a atenção para o problema, sem pretensões de diagnóstico ou resolução. Até porque as razões que levam as pessoas a quebrar o sigilo em torno de algo variam drasticamente, desde a simples coscuvelhice até aos interesses económicos ou políticos. Não pretendo assim reflectir sobre o que poderia ser feito para atenuar estes abusos (e certamente que haveria muitas formas de o fazer) mas sim chamar a atenção para a leviandade com que os profissionais (e mesmo a restante população) encara o assunto.

Vou então falar de duas situações a meu ver ilustrativas do fenómeno: o recente escândalo em torno dos dados fiscais e uma mais subtil mas recorrente violação do sigilo médico.

Em relação à primeira não me refiro ao caso da lista VIP, mas sim à descoberta de que certas personalidade e celebridades reuniiam um número estranhamento elebado de consultas aos seus dados fiscais. Consultas essas que não eram, em grande parte, justificadas por necessidades profissionais. Confrontados com essa realidade, alguns funcionários prevaricadoress defenderam-se alegando que a consulta teria sido efectuada por mera curiosidade.

Ora bem, embora por um lado seja tranquilizador que a consulta não tenha sido efectuada por motivos mais sombrios (eg: vender os dados) não é por outro reconfortante saber que alguns funcionários colocam a sua curiosidade acima do segredo fiscal. Os dados são considerados sigilosos por alguma razão e, a não ser quando justificada por motivos profissionais, a sua consulta qualifica-se como abuso de poder.

Relativamente à segunda situação queria dividi-lo em duas questões separadas: tagarelice nos corredores e em casa e a relação dos hospitais com os media.

A primeira é relativamente inocente, mas ainda assim merecedora de atenção. Refiro-me ao "epá hoje tive este doente que fazia isto e acoloutro", tipicamente aplicado a hábitos estranhos e/ou ligados a questões sensíveis na nossa sociedade, como o sejam a sexualidade. Tipicamente não são referidos nomes (caso em que passaria de relativamente inocente a bastante grave) mas, no caso da tagarelice de corredor (no local de trabalho), não é obviamente difícil de descobrir quem é.

No caso doméstico o assunto é ainda mais inocente, já que mesmo neste mundo pequeno seria difícil descobrir a identidade do utente, mas ainda assim admito que poderia ser criticável enquanto risco desnecessário. Chamo no entanto a atenção para, no caso de celebridades, o sigilo médico ser descartado por completo e ser comum ver todo o tipo de profissionais de saúde a discutir as suas maleitas nos corredores e em casa. A título de exemplo, chegaram aos ouvidos de muitos Portugueses alguns dos hábitos e maleitas de Eusébio, durante o seu internamento. Há que ver que mesmo o mais inocente "esteve hoje no meu consultório o ..." é na minha opinião altamente reprovável já que, sabendo a especialidade do médico, se fica logo com uma ideia do tipo de problemas que a pessoa possa ter. A reflectir.

A segunda questão, mais grave e estranha na minha opinião, prende-se com as declarações aos jornalistas, por parte de profissionais de saúde e/ou administradores, à porta do Hospital. É tão comum como reprovável ver, em casos que involvem figuras públicas, médicos a falar da situação clínica do paciente aos jornalistas. Embora em alguns casos possa existir um consentimento do doente ou da família (vêm-me à cabeça os casos do Eusébio e de Maria Barroso) noutros penso que nem isso aconteceu (recordo-me por exemplo do recente caso da mão toxicodependente que fugiu da maternidade com o filho recém-nascido). Pessoalmente advogo que, mesmo com o consentimento do paciente ou família, não é o papel dos profissionais de saúde prestar declarações à  imprensa sobre o caso clínico dos doentes a seu cargo.

Estes não são, como é óbvio, os únicos casos em que isto acontece, nem sequer os mais graves (veja-se por exemplo as recorrentes violações do segredo de justiça). Mas acho que são representativos da pouca importância que as pessoas dão ao carimbo sigiloso.

Para terminar, gostava de lançar para reflexão uma questão relativa à responsabilidade. Nos termos da lei, apenas comete um crime aquele que obtém e transmite informação confidencial. A sua consequente publicação e leitura já não é criminalizável. Pensemos a título de exemplo no recente caso o leak de documento confidenciais do Sporting, entre os quais o contrato de trabalho de Jorge Jesus. É considerado criminoso o hacker que obteve os dados e os disponibilizou inicialmente. Já não tem nada a recear o cidadão comum que, mesmo sabendo que os dados são confidenciais e foram obtidos de forma legítima, os vai consultar. Isto pode fazer sentido, já que seria muito difícil provar que a pessoa sabia que aquilo que ia consultar era sigiloso e tinha sido obtido de forma ilegal*. Mas também não são atrbuídas culpas aos meios de comunicação que, sabendo que o material é confidencial, o re-publicam e comentam. No caso do exemplo usado, muitos foram os comentários feitos pelos meios de comunicação social ao contrato de Jorge Jesus. Ora aqui não temos apenas um cidadão a consultar por mera curiosidade; temos organizações a aproveitarem-se de actos ilegais (praticados por outrém) para subir audiências e/ou ganhar dinheiro. Não poderia isto ser criminalizável?


Filipe Baptista de Morais

*De notar que este desconhecimento nada tem a ver com desconhecimento da legislação em vigor, que não serve de desculpa ao seu incumprimento.

domingo, 11 de outubro de 2015

Legislativas: debates

Este texto pretende ser o primeiro de uma série (não necessariamente seguida) em torno das eleições legislativas. Bem sei que vem um pouco atrasado, mas talvez seja melhor visto que assim temos não só mais material para comentar como um maior distanciamento para melhor comentar tudo o que passou em torno do tema,

Pois bem, na minha opinião os debates entre os diversos candidatos a primeiro-ministro ficaram abaixo das expectativas em toda a linha, às vezes por culpa dos intervenientes, outras dos moderadores e ainda outras por culpa da organização (ie: canal televisivo ou estação de rádio, etc...).

A primeira crítica que tenho de fazer é ao facto de nem todos os candidatos terem tido direito ao debate televisivo (apenas os que já tinham assento parlamentar), com a agravante de os debates entre os partidos mais pequenos não terem sido transmitidos em canal aberto. Bem sei que isto resultou da legislação em torno das campanhas, revista há poucos meses, assimo como às negociações entre os partidos e os meios de comunicação, mas isso não a torna imune à crítica (apenas transfere a culpa para a dita legislação. Como vou escrever um texto inteiramente dedicado à legislação em torno das campanhas não vou aqui aprofundar o assunto.

 Em seguida, tenho de criticar o enquadramento dado aos debates. A linguagem utilizada nos meios de comunicação social para se referirem a eles era a de um encontro de boxe: era o debate de x contra y, era o vencedor/derrotado do debate, etc... Ora a ideia de um debate não é ganhar nem perder; é, isso sim, discutir ideias de modo a que os espectadores possam decidir com quais se identificam mais. Na realidade a única situação em que poderia ser legítimo usar esses termos seria se um seus intervenientes conseguisse convencer os outros da superioridade das suas ideias, terminando o debate com um "epá, de facto, parece-me que isso faz mais sentido, vou retirar-me cda corrida e passar a apoiar a tua candidatura".

Outra coisa que não consigo perceber é o porquê de uma duração tão curta para os debates (sendo que apenas se realizam um ou dois entre cada par de candidatos). Na realidade, sou contra a existência de uma duração fixa de todo. Isso leva a que, quando não querem responder a uma questão, os intervenientes se limitem a divagar sobre outros assuntos durantes uns minutos até o jornalista lhe dizer que estão sem tempo e que têm de mudar de tema (eg: Portas usou e abusou desta estratégia no debate com (e não contra) Catarina Martins. Permite ainda, aliado aos cronómetros que contam o tempo de intervenção de cada político (não estaríamos melhor sem eles já agora?) que se façam intervenções polémicas e/ou se lancem farpas quando sabemos que o opositor já não vai ter tempo de resposta* (eg: a intervenção de Costa a respeito das dívidas da Câmara de Lisboa no final do debate com Passos Coelho). Mas o pior mesmo é que força os jornalistas a interromper constantemente os debates, por vezes quando se estão a discutir temas importantes, dizendo que não há tempo ou que é preciso passar ao próximo tema. Estas intromissões foram uma constante no primeiro debate Passos-Costa, com grande pena minha. E para quê? O que é que a televisão teria de tão importante para transmitir que não permitisse alargar o debate um segundo? Eu respondo: umas ridículas e ofensivas (para o jornalismo) questões finais (já lá vamos), assim como dar tempo de antena a uma horda interminável de comentadores políticos que se vão debruçar sobre.... o debate. Quando passa mais tempo a discutir um debate do  que a duração do mesmo é porque algo está claramente mal.

Vamos então analisar as questões finais do debate Costa-Passos. Não só para mostrar porque é que, na minha opinião, não justificavam a interrupção prematura do debate em si, mas também porque acho serem representativas de uma certa podridão jornalística.

  1. José Sócrates manifestou-lhe publicamente apoio, Agradece esse apoio e vai fazê-lo pessoalmente? - Judite Sousa (JS) para António Costa (AC). Reiterou segundos depois o pedidode que Costa respondesse à segunda parte da pergunta (se iria agradecer pessoalmente),
  2. Demite-se da liderança do partido se perder? - João Adelino Faria (JF) para Passos Coelho. De seguida colocou a mesma pergunta a António Costa.
  3. Existindo na área do PS um candidato e uma militante e ex-presidente do PS, esta circunstância pode vir a dividir o PS? - JS para AC.
  4. Definiu aquilo que foi considerado na altura o perfil do candidato presidencial na moção que apresentou ao 35º Congresso do PSD. Ora perfilando-se como candidatos o ex-lider do PSD e o ex-presidente da 2ª maior Câmara do país, mantém o que disse no congresso do PSD? - JS para PC. Mais uma vez repetiu a pergunta, após Passos Coelho ter educadamente apontado a irrelevância da mesma (e ainda assim ter respondido).
  5. Há algo de que se arrependa de ter feito nos últimos quatro anos enquanto primeiro-ministro? Rápido. Que se arrependa, não que tivesse feito diferente, que se arrependa. - Clara de Sousa (CS) para PC.
  6. Há algo de que se arrependa de ter feito ou dito no último ano enquanto líder do maior partido da oposição? - CS para AC.
Nenhuma das questões acima é minimamente relevante para as legislativas que se avizinham. A 1ª pergunta não é, aliás, relevante coisa nenhuma, excepto eventualmente para figurar na capa de alguma revista cor-de-rosa e alimentar coscuvelhices de cabeleireiro. Já as respeitantes à demissão dos candidatos em caso de derrota, assim como as respeitantes às presidenciais, até podem ser relevantes politicamente, mas certamente que não têm lugar num debate televisivo a respeito das legislativas. Já agora desde quando é se chama debate a responder às perguntas de jornalistas ?

O facto de os jornalistas terem decretado um (curto) tempo para as respostas revela muito sobre o seu real propósito: não o de esclarecer os Portugueses sobre seja o que for, mas sim tentar extrair uma frase ou expressão mais infeliz (um "caso") para colocar nas manchetes e repetir até à exaustão. Mais, nota-se pelo tipo de questões e pela forma como foram feitas que têm o intuito de entalar os entrevistados (destaque aqui para as perguntas de Clara de Sousa). Isto não é surpreendente já que muitas pessoas (incluindo muitos jornalistas mas não só) consideram que conseguir entalar um entrevistado é sinal de bom jornalismo. Mas a verdade é que apenas o é quando isso leva a (ou pelo menos tenta) que o entrevistado esclareça ou clarifique alguma posição mais controversa. Entalar um político com uma questão irrelevante (eg: a 1ª) ou parva (eg: a 5ª e a 6ª) é somente irrelevante.

Resumindo, defendo a existência de um maior número de debates e que incluam todos os candidatos nas legislativas, se necessário for abdicando do formato de frente-frente (ie: recorrendo a debate com três ou quatro participantes). A desculpa do tempo de antena e dos custos associados não cola visto que dispomos de uma canal estatal que pode e deve assegurar a transmissão de eventos com interesse nacioal; resolvia-se também assim o problema das transmissões em canais fechados. A extensão dos debates devia ser maior e menos rígida, sendo que provavelmente o melhor seria partir os debates por temas (visto que também não é razoável fazer um debate de 3 ou 5 horas seguidas). Por último, acho que é imperativo que os moderadores deixem de tentar gerar conteúdo para tablóides e se concentrem em conseguir que os Portugueses saiam dos debates mais esclarecidos.

Filipe Baptista de Morais


* Isto acontece também frequentemente no Parlamento.

sábado, 26 de setembro de 2015

Breaking News: médicos poderão ser humanos

Há dias deparei-me com uma notícia no jornal Expresso sob o título "Privação de sono nos médicos pode afectar atendimento aos doentes". Para uma conclusão tão óbvia penso que poderia remover o hipotético pode; ainda assim abri a notícia com algum interesse, julgando tratar-se de algum testemunho clínico sobre más decisões tomadas em cima de uma noite não/mal dormida.

Mas não. A notícia refere antes um estudo que, após avaliação de 18 jovens médicos, concluíu que a privação de sono leva a um declínio nos níveis de concentração, pior resposta a estímulos e menor velocidade de reacção face aos mesmos. Pois bem, isto seria muito interessante se não fosse já mais que sabido. Eu pelo menos sei que quando faço directas não me consigo concentrar tão bem. A minha mãe sabia-o quando me dizia para não me deitar tarde em dias de escola. O IMTT sabe-o quando alerta para o aumento do tempo de reacção com o cansaço. Os pilotos sabem-no. Que raio, até as seguradoras médicas o sabem e não se responsabilizam por erros médicos cometidos após mais de x horas de trabalho consecutivas. Mas, aparentemente, a comunidade científica não o sabia.

Logo no início da notícia o estudo é referido como "o primeiro estudo feito em Portugal sobre os efeitos de privação de sono nos médicos". Talvez esteja aqui o problema; apesar de estar mais que demonstrado que as pessoas têm certas capacidades diminuídas com o cansaço tal efeito nunca tinha sido estudado em médicos Portugueses. Mas há que perceber que os médicos são pessoas e Portugal fica no planeta Terra, e que portanto considerações mais genéricas também se lhes aplicam. É que senão arriscamo-nos a, daqui a duas semanas, estarmos a perder mais tempo (e recursos e dinheiro) a investigar se o cansaço também afecta engenheiros Italianos. (De referir ainda que existe obviamente na literatura estudos sobre os efeitos da privação do sono com amostras um bocadinho melhores que dezoito pessoas*).

Dito isto, tenho que concordar com as sugestões apresentadas no mesmo estudo, face às conclusões a que chegaram **. Seria interessante estudar a possibilidade de escalonar os médicos em turnos mais curtos, como penso ser o caso dos enfermeiros. Suponho que seja mais difícil, visto que há menos médicos que enfermeiros e as logísticas de escalonamento tornam-se mais complicadas em grupos pequenos. Mas, a ser exequível, o utente teria muito a ganhar.

Filipe Baptista de Morais


*Em defesa do estudo, há que dizer que pode ter sido simplesmente mal noticiado. O artigo refere que compararam médicos que faziam trabalho nocturno com outros que não o faziam, mas não diziam quando os testes eram realizados (ie: se na manhã seguinte ou se em qualquer altura aleatória). Também nada dizem sobre a magnitude dos efeitos observados. É, portanto, possível que o estudo seja mais interessante do que aqui faço parecer mas, dado que não fornecem meios para que possa consultar o original (nem sequer referem o título do estudo) a minha análise teve que se basear no conteúdo da notícia em si.

** Na realidade, arriscaria dizer que o estudo em si não passou de um pretexto para poderem divulgar essas sugestões.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Cultura Snob

Este texto surge como um comentário ao artigo de Henrique Monteiro no Expresso, intitulado Um elogio da CNB à Gulbenkian. E à classe média.

Aparentemente o jornalista foi assistir a uma atuação da Companhia Nacional de Bailado e adorou, achando depois por bem elogiar a dita e recomendá-la a todos os seus leitores. Nada contra. O que venho aqui criticar é a visão snob da cultura, assim como algum alheameanto da realidade, que me parece transparecer ao longo do texto.

Comecemos pelo snobismo. Henrique Monteiro considerou o espectáculo a que assistiu um elogio à class média porque "(...) é ela que prova que, desde que o acesso lhe seja possibilitado (neste caso é gratuito), adora ver dança, teatro ou música de grande qualidade (e não os programas para mentecaptos que algumas estações televisivas produzem)". Fica pois claro que é louvável gostarmos de dança, teatro ou música (não esquecer o de grande qualidade, já que neste capítulo penso que apenas se referiria à clássica) e criticável assistir aos tais programas de televisão (embora não particularize, assumo que se refere a programas como Casa dos Segredos e Tardes da Júlia).

Mas, pergunto eu, porquê? Assisstir a um bailado fará de mim uma pessoa melhor ou mais inteligente? Esta adulação das artes clássicas (ópera, teatro, bailado, etc...) em detrimento de formas de entretenimento mais populares (programas de televisão, jogos de futebol, jogos de computador, etc...) não é mais do que uma tentativa colectiva (e, espero, sub-consciente) da parte dos seus apreciadores de se sentirem superiores à restante população. Vai muito de encontro ao agora sobejamente difundido conceito de arte difícil, que justifica o desagrado que alguém sente perante uma obra de arte considerada genial pelos peritos como mera ignorância ou preguiça. Uma obra (pode ser um quadro, uma composição musical etc...) elevada a este patamar tem uma série de benefícios: para além de aqueles que verdadeiramente a apreciam (que serão, naturalmente, poucos já que que se trata de arte difícil) a obra receberá elogios de muitos outros que, por receio de exclusão social (eg: serem considerados mentecaptos) não se atreverão a expressar a sua verdadeira opinião sobre ela. Finalmente, todos aqueles que a repudiarem verão as suas opiniões descartadas como inválidas por desconhecimento ou falta de hábito. A obra é assim, de certa forma, elevada por unanimidade já que os seuscríticos simplesmente ainda não desenvolveram as competências e capacidades necessárias à sua verdadeira apreciação. A enologia e a gastronomia gourmet também já começam a dar os primeiros passos nesse sentido.

A verdade é que o Mundo não ficará melhor por eu ir assistir a uma atuação da CNB em detrimento do Benfica-Sporting. Nem o meu (des)gosto por bailado diz algo sobre a minha capacidade intelectual ou sobre o meu carácter (pode dizer, isso sim, muito sobre o meu estrato social, fundamentalmente devido ao fenómeno de pressão social que explicitei no parágrafo anterior).

É óbvio que Henrique Monteiro (e muitos outros) discordaria de mim. O parágrafo imediatamente abaixo ao citado demonstra-o bem. No entanto, o que vou dizer a seguir é mais uma constatação do que uma análise, pelo que espero ser mais consensual.

É que, por muito que os eruditos desejam o contrário, a classe média não adora ver dança, teatro ou música, a não ser que esta última se refira ao Justin Bieber e a primeira ao Dança com as Estrelas. A realidade é que são os estádios de futebol de que atraem dezenas de milhares todas as semanas, são os programas para mentecaptos que têm audiências de milhões (e sim, a classe média também faz parte desses milhões). Até porque, vejamos, se considerássemos que são apenas as classes baixas que enchem os estádios de futebol (com bilhetes tipicamente à volta de 10-30 euros) então certamente que a classe média não se importaria de pagar o dobro ou o triplo pelos seus passatempos intelectuais.

Dizer que a classe média adora ver essas actividades "desde que o acesso lhe seja possibilitado" não faz, portanto qualquer sentido. Os espaços existem e condições económicas para pagar a actuação também. O que falta é mesmo vontade de ir. Diria até que as enchentes que o jornalista refer não se devem de todo ao facto das actuações serem gratuitas, mas sim por estarem inseridas no Festival ao Largo, um evento da moda. Arriscaria dizer que a maioria dos espectadores estava mais interessada em marcar presença e contar aos amigos que lá tinha ido do que propriamente na atuação.

Ligar o teatro e o bailado à identidade do Português revela um ainda maior alheamento da realidade: o Tuga tem muito mais que ver com futebol do que com qualquer uma das duas.

Assim, com todo o mérito que a actuação da CNB possa ter tido, não vejo nela qualquer elogio à classe média. Já nas palavras do jornalista vejo um claro (embora involuntário) insulto à mesma.

domingo, 12 de julho de 2015

Voto Democrático

Penso que já abordei o tema por estas bandas, mas infelizmente não o consegui repescar do fundo dos arquivos. Refiro-me à temática dos sistemas de voto, e do impacto que têm na democracia.

Hoje quero falar de um sistema em particular, referido aqui. Nesse sistema, aparentemente utilizado na votação do Orçamento Participativo de Cascais, cada eleitor tem dois votos para distribuir como lhe aprouver. Não gosto do sistema, e a título de exemplo daquilo que acho que esse sistema pode trazer de mau cito precisamente a grande história que eles usam para o promover:

Estava uma sala cheia de gente. Havia um grupo grande que queria algo para uma escola e havia um grupo grande que queria algo para um parque. E estava lá um tipo sozinho, um professor primário apanhado no meio daquilo, cuja ideia era ligar diferentes vilas ao centro da cidade, não sei se através da Internet ou de transportes. A ideia era mesmo muito simples, mas ele apresentou-a muito bem. Se houvesse um sistema de um só voto, ele teria perdido, mas os dois grupos grandes gostaram dele e todas as pessoas deram o seu segundo voto ao projeto dele. Acabou por sair vencedor. Com uma simples mudança, dar mais um voto a cada pessoa, podem criar-se consensos.

Ora bem. Chamemos A e B a cada um dos grupos grandes e P ao grupo mais pequeno "liderado" pelo dito Professor. Os comentários finais à história sugerem que o desenlace (vitória do grupo P) foi o mais positivo possível (no sentido democrático da palavra) e que tal não seria atingível com o sistema usual de um voto por pessoa, provando assim a superioridade do sistema proposto. Mas será mesmo assim? Vou dividir a minha contra-argumentação em dois cenários, já que para mim não ficou 100% claro se o 2º voto era obrigatório ou opcional. Assim, critico primeiro o sistema em que esse segundo voto é obrigatório e depois a situação oposta.
  • 2º Voto Obrigatório. Inicío a minha crítica a este cenário com um exemplo centrado na situação em análise. Imaginemos que sou apoiante do grupo A. Sei, por sondagens ou burburinho, que o meu grupo corre o risco de perder as eleições para o grupo B, que também tem muito apoiantes. Logo, e independentemente das minhas reais preferências, votarei A+P, com receio de dar votos ao grupo B (que julgo ter hipóteses de vencer o meu grupo). Os apoiantes do grupo B seguiriam o mesmo raciocínio, votando B+P. Resultado, mesmo que ninguém (excepto o Professor que originou o movimento) apoie de facto  P, o sistema leva a que este chegue à vitória. Este problema é na, realidade, o inverso de um ao qual estamos mais habituados: o voto inútil. No caso do voto útil, como todos sabemos, o eleitor não vota no partido mais pequeno pelo qual tem preferência mas sim num dos maiores, com receito de que o seu voto seja inútil. Nesta situação, a que passarei a chamar de voto inútil, o eleitor muda o seu (2º) voto de um partido muito votado (mas que não é a sua 1ª preferência) para um menos votado com receio de que o seu voto seja útil. Pode parecer que o problema se põe por termos apenas três candidatos, mas não é verdade. Consideremos as nossas eleições legislativas. Um apoiante do PS nunca escolheria em 2º lugar a coligação PaF, já que isso poria a sua vitória em risco, e vice-versa. Assim, todos esses segundos votos seriam deslocados para partidos pequenos, considerados como sem hipóteses de vitória (o nosso P do caso anterior). Corríamos assim o sério risco de ter partidos pequenos largamente sobre-representados (eventualmente vencendo até as eleições) devido ao simples receio de canalizar votos para os adversários mais directos. 
  • 2º Voto Opcional. Esta parece uma estratégia vencedora: afinal, as pessoas podem simplesmente optar por não usar o seu 2º voto, convergindo assim para o método usual. Mas tem, na realidade, um grande problema que é o valor dado ao 2º voto. O texto referido parece sugerir que o 2º voto vale o mesmo que o primeiro. Mas como podemos assim exprimir a nossa preferência de um face ao outro? Poderíamos, suponho eu, escolher nós próprios o peso a atribuir a cada voto. Mas as nossas preferências tendem a ser qualitativas e não quantitivas, sendo difícil pensar algo como as minhas preferências dividem-se em 70% para A, 20% para B e 10% para P. Mesmo que fossemos capazes de tal exercício, iríamos aplicá-lo? Dado que o meu voto não pode valer mais que o de outra pessoa, a soma das minhas duas partes teria de ser 100%. A lógica do voto útil não ditaria então que renunciasse a utilizar o meu 2º voto?
Cito agora um comentário feito à notícia d'Observador referenciado acima:

Que bom, também acho que a democracia precisa de evoluir! Parabéns Cascais. Gostei de conhecer o projeto D21.
Eu gostava que nas eleições nacionais cada eleitor pudesse distribuir 10 cruzinhas, assim podia compor a minha assembleia da república, com os vários partidos na proporção que acho correta. Votos negativos, nunca tinha pensado, mas também me parece interessante.


Este comentário vai em linha com o projecto Democracia 2.1, que inspirou o sistema de votação de Cascais. O que propõe é, no fundo, que cada pessoa tenha N votos (digamos, por exemplo, N = 100) e que os distribúa da forma que entender. Pode ser muito inovador e parecer um passo em frente na liberdade democrática, já que dá mais liberdade ao eleitor. Mas, pessoalmente, não acho que seja uma boa ideia. 

Em primeiro lugar, e para pegar no comentário que tão bem expressa a ideologia por detrás do sistema de voto proposto (sem ironia de qualquer espécie), não creio que faça sentido o eleitor compor a sua assembleia da república com os vários partidos na proporção que achar correcta. Cada partido tem a sua ideologia e, tipicamente, o eleitor é  chamado a escolher aquela onde se revê mais. É certo que podemos apoiar o partido A nalgumas matérias, e o B noutras. Mas isso não seria reflectido na nossa escolha de dar 60 votos ao partido A e 40 ao partido B, já que em lado nenhum estaría explícito em que áreas concordávamos mais com o partido A e quais as em que apoiávamos B. Assim, não faz sentido dizer que quero um naco de PS em cama de PSD, temperado com umas pitadas de BE e uma redução de LIVRE.

Depois, o sistema proposto é apenas uma generalização do utilizado em Cascais, com 2º Voto Opcional, padecendo dos mesmos problemas que identifiquei acima. Isto é, tínhamos por um lado a problemática de transpôr as nossas preferências qualitativas para números, o que resultaria num processo francamente aleatório. Isto se não fosse dominado por uma lógica cínica/estratégica, o que nos leva ao segundo e  também já referido problema: essa maior liberdade não seria, a meu ver, utilizada em prol de obter resultados mais representativos, indo apenas tornas as eleições num jogo cícino em que o voto de cada cidadão teria mais de estratégia do que de sinceridade. Para clarificar, chamo jogo a qualquer estratégia de voto que não reflicta as preferências reais do eleitor, sendo exemplos de jogos tanto o voto útil como o inútil (nos diferentes sistemas considerados).

Enalteço a visão de que há outras formas de votar, de que a nossa não é necessariamente a melhor e a importância de ter este debate e fazer esta reflexão. As bases da Democracia, nomeadamente o sistema eleitoral, são por vezes olhados como algo intemporal e estanque, como se qualquer alteração às mesmas significasse o colapso da Democracia. Não é assim e, dada a sua importância, nunca devermos desistir de pensar no assunto e propôr novas soluções. No entanto, não concrdo com as alternativas propostas.

Uma das razões pela qual prefiro o nosso sistema actual é a de que o único jogo em que as pessoas têm a tentação de alinhar é o voto útil, cujas consequências são bem mais limitadas que as do voto inútil. Isto porque o voto útil tenta as pessoas a retirarem o seu voto dos partidos menos votados e a transferi-lo para os com mais percentagem de votos. Assim, a tendência é para sub-representar os partidos pequenos e sobre-representar os grandes o que, apesar de obviamente negativo, não é de todo tão perigoso (ou negativo do ponto de vista da representatividade dos resultados) como a sobre-representação dos partidos pequenos que derivaria do voto inútil. Na prática, o voto útil apenas tem poder para fazer o 2º lugar trocar com o 1º, enquanto que com o voto inútil teria a imprevisível capacidade de levar qualquer partido à vitória.

Por última, uma pequena nota em relação às legislativas que se avizinham. Os que seguem este blog já devem conhecer a minha posição em relação ao voto útil, acto que na minha opinião põe em causa a legitimidade das eleições e que deve, por isso, ser evitado. Mas, para os que colocam um certo pragmatismo à frente de tais considerações ideológicas deixo mais umas razões para fugir ao voto útil nas próximas sondagens. As sondagens não dão, até ao momento, espaço para maioria absoluta de qualquer candidato. Isto significa que, qualquer que seja o partido maioritário no Parlamento, terá que negociar com os restantes, nomeadamente os mais pequenos e vulneráveis à lógica do voto útil. Esta é portanto uma excelente oportunidade de todos aqueles que acreditam no potencial dos partidos mais pequenos os tirarem finalmente da (fácil e comfortável, há que dizê-lo) posição de eterna oposição e lhes atribuir algum poder concreto. Isto, aliado ao momento importante em que nos encontramos, são razões mais do que suficientes para deixar a utilizade de lado e votar em consciência.


Filipe Baptista de Morais

domingo, 28 de junho de 2015

Operação Justiça

Hoje decidi aproveitar a boleia do post anterior e voltar a escrever sobre Justiça. O texto de hoje será muito mais curto, já que se trata de criticar uma situação com uma gravidade francamente inferior, quase ao nível da mariquice.

Refiro-me aos nomes que as diversas polícias arranjam para nomear as suas operações, dando como exemplos Fazenda Branca, Apito Dourado, Marquês, Labirinto, Monte Branco, Portucale, Operação Furacão e Face Oculta. Durante muito tempo pensei que estes não fossem os nomes oficiais das operações, apenas designações inventadas pela Imprensa. Mas sucessivas declarações de fontes oficiais e alguma investigação acabaram por me convencer do contrário.

A meu ver todas delas deveriam ter nomes como OP_PJ_101745 ou OP_PSP_4002113. O meu desconforto prende-se com três razões muito simples. A primeira é a de que, ao arranjar nomes mediáticos para as suas operações, as polícias parecem de facto estar desejosas de mediatizar as suas operações, convidando os media a intrometerem-se nelas, quiçá violando o segredo de Justiça. Ao mesmo tempo, essa mediatização parece colocar uma investigação da PSP ao mesmo nível de uma investigação do Correio da Manhã. Os nomes importam, e podem tirar ridicularizar aquilo que é sério. Não é por acaso que os nossos e-mails profissionais tendem a ser do género jose_faria@somewhere.com e não lenhador_Rijo12345@somewhere.com.

A terceira e principal razão que me leva a criticar a escolha de nomenclaturas é a presunção de culpabilidade subjacente a alguns deles. Embora como é óbvio o nome dado à operação não interfira com a validade e idoneidade da mesma, nomes como Fazenda Branca, Marquês, Labirinto e Face Oculta suscitam no espectador imagens de redes de poder e conspiração ao nível de um romance de Dan Brown, promovendo ainda mais os julgamentos sumários em praça pública. Se estivermos a investigar se um cão é demasiado agressivo para poder andar à solta, chamar à operação Dentes Ferozes dificilmente vai ajudar a que pessoas não façam julgamentos precipitados.

Pode-ser dizer que isto é uma mariquice, e que a Justiça tem problemas maiores para resolver primeiro. Sem dúvida. Mas precisamente por ser um problema tão pequeno é que seria tão simples resolvê-lo.

sábado, 27 de junho de 2015

Caso Sócrates

É hoje em dia impossível viver em Portugal sem conhecer a identidade do prisioneiro nº44 de Évora. O caso Sócrates tem ganho um mediatismo considerável embora, na minha opinião, a gravidade dos acontecimentos o justifique e ainda mais. As últimas são as de que o MP (Ministério Público) propôs a alteração da medida de coacção para prisão domiciliária com pulseira electrónica. Após a recusa de Sócrates em utilizar a mesma, o (já famoso) juíz Carlos Alexandre decidiu então manter a prisão preventiva.

Como sempre, tudo isto se soube antes de anunciado oficialmente, através da Imprensa. O segredo de Justiça continua e a ser uma anedota, ignorado sempre que a sua violação possa render mais uns trocos (e/ou audiências). E, ainda que possa ser difícil detectar a origem das fugas internas na Justiça, não é difícil chegar ao fim de um artigo e verificar a assinatura que a acompanha. Alegarão os jornalistas que desconhecem estar a publicar material confidencial? Ainda que não se consiga provar que houve foul-play na obtenção de informações (eg: subornos,etc...) a mera publicação de material reconhecidamente ao abrigo  do segredo de justiça devia, na minha opinião, ser punível por lei.

Mas vamos ao que mais interessa. Não faço ideia se Sócrates é inocente ou culpado. Nem de quê, já que ainda não existe acusação formal (tanto quanto sei ser rico ainda não é crime em Portugal, embora para lá caminhemos). Sei, no entanto, que não vejo justiça na forma como o caso está a ser conduzido. O ex-primeiro ministro está privado da liberdade há mais de seis meses, sem acusação, e aparentemente assim vai ficar ainda bastante mais tempo. Isto já me parece inadmissível. Que tudo seja, aparentemente, a ser feito dentro do âmbito da lei é um conforto amargo. Não vejo Justiça nenhuma numa legislação que prenda para se investigar (sim, é um chavão, mas se não é disso que se trata então é do quê?). A proibição de dar entrevistas apenas veio acentuar ainda mais o meu desconforto com este caso. Vi três justificações para essa proibição: preservação segredo de justiça, possibilidade de perturbação do inquérito e perturbação do funcionamento normal do estabelecimento prisional (sendo esta definida pelo director do mesmo, e não por um juiz). A primeira não faz qualquer sentido, seja porque o segredo de justiça já há muito que deixou de ser preservado, seja porque este se destina a proteger o réu. Se o réu pretende comunicar publicamente informações que tenha sobre o caso, não vejo mal algum nisso. A segunda ainda menos percebo. Receiam que, em directo, Sócrates diga algo como "oh  mãe, vai à cave e abre o cofre com o código 26398298 e destrói todos os documentos que lá estejam dentro"? Certamente que teria formas melhores de o fazer. Ou receiam que apresente um chorrilho de críticas tão intenso que perturbe o trabalho dos juízes e magistrados? Nesse caso sugeriria que arranjassem outros, que lidassem melhor com a pressão. Quando à última, não vejo como é que uma entrevista perturbaria mais o funcionamento normal da prisão do que uma mera visita conjugal.

Mas, infelizmente, há mais, muito mais. Quem leu o acordão inicial justificando a prisão preventiva sabe tem muito mais de mesquinho que de idóneo e imparcial. Infelizmente não coonsegui agora re-descobrir o texto na íntegra, mas deixo algumas passagens que, embora pareçam transcrições de alguma conversa de tasca sobre o tema, são de facto tiradas do dito acordão:

  • "Díriamos, amizade sim, porque não? Mas tanto assim, também não! E amizade assim, por que razão? O arguido Carlos é um empresário, um homem de negócios. Até pode ser uma pessoa altruísta. Mas é empresário, vide de e para o dinheiro, para o reproduzir, multiplicar e ter lucros".
  • "Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vêm".
A primeira citação, referente à "amizade sem limites" de José Sócrates com o empresário Carlos Santos Silva e às avultadas transferências de dinheiro efectuadas por ambos é simplesmente surreal. Primeiro, pela perspectiva de uma criança de 4 anos sobre aquilo que significa ser empresário. Que eu saiba, o Shor Doutor Juíz também vive de dinheiro (bom, da comida que compra com ele) e, apesar de talvez gostar do seu trabalho, certamente que gosta que este dê lucros e multiplique as suas poupanças. Esta patética tentativa de impôr considerações morais a um tipo de carreira profissional seria somente infantil, não fosse o caso de vir de alguém com importantes poderes de decisão no ramo da Justiça; nesse caso torna-se extremamente perigosa. E, perdoem-me, mas não creio que compita ao Tribunal da Relação definir qual o nível adequado de amizade entre dois cidadãos, nem o montante de transferências. E o cheiro a esturro pode ser suficiente para uma condenação em praça pública depois da hora de almoço, mas nunca pode ser de argumento a juízes representantes da Justiça. A segunda citação, assim como muitas outras semelhantes que, infelizmente, não consigo reproduzir de memória, ilustra bem dois aspectos importantes dos signatários do acordão. O primeiro é o seu desprezo pelo princípio da presunção da inocência, pilar dos sistemas de justiça modernos (bom, os Ocidentais pelo menos). O segundo é a aparente leveza com que encaram toda esta situação. Claramente privar um cidadão da sua Liberdade por uns meses não é algo que os perturbe por aí além. Não digo que juízes com este perfil não sejam indicados para julgar um caso desta importância; acho que não são adequados para julgar seja que caso for.

A actual (tentativa de) redução da medida de coação também não parece fazer muito sentido. A prisão preventiva tinha sido justificada pela interferência na investigação (após o inicialmente considerado perigo de fuga ter sido afastado como ridículo; o que não deixa de ser interessante pois fica a ideia que primeiro manda-se prender e depois se pensa na justificação). Agora, recuperaram o perigo de fuga no pedido de pulseira electrónica. Porquê? Na minha opinião, por uma razão muito simples: não cabe na cabeça de ninguém que uma pulseira electrónica previna Sócrates (ou outra pessoa qualquer) de interferir com qualquer investigação. A sua finalidade é, obviamente, a de limitar o perigo de fuga. Mas então porquê invocar um já afastado argumento para, seis meses depois, reduzir a medida de coacção? Creio que a única respostas possível é a de que o MP está a tentar reduzir a borrada que fez e reduzir a contestação social e na imprensa. Ver a Justiça reduzida a manobras políticas dignas de um bom acessor de imagem é tão desapontante como revoltante. Já agora, para quem prefere textos assinados com nomes conhecidos, deixo aqui uma referência a um artigo de Daniel Oliveira que vai de encontro aos meus sentimentos sobre o assunto. 

Deixo também uma segunda referência, desta vez à opinião de Ricardo Costa. Diz ele que esta decisão (de manter a prisão preventiva) apenas tem relevância pessoal, e não ao nível da avaliação que fazemos do nosso sistema de Justiça. Não podia discordar mais. Que alguém encare com naturalidade que se prive um cidadão da liberdade por um ano inteiro (o mesmo texto sugere que a acusação será formalizada em Novembro) sem acusação formal (quanto mais um julgamento) parece-me a mim um sinal de que o nosso sentido de Justiça está tão podre quanto as Instituições que a deveriam assegurar.

Uma nota, também, para o vergonhoso comportamento dos media em todo este processo (não muito diferente, reconheça-se, daquele que têm em qualquer outra situação). Durante semanas fui brindado com um registo diário das visitas (pessoais, diga-se) a José Sócrates na prisão, e na forma como os seus amigos o tinham achado, com comentários como "está com bom ar" ou está animado" (e desenganem-se aqueles que acham que falo de tablóides, consultem o registo do tão respeitado Expresso por exemplo).  Para além dos recorrentes e já referidos ataques ao segredo de Justiça, sucederam-se também as notícias irrelevantes sobre os luxos da vida de Sócrates, com direito a visita guiada à sua casa em Paris, assim como quaisquer outros factos que pudessem parecer criticáveis (digo parecer porque eu, pessoalmente, não condeno o luxo) e/ou minar a sua credibilidade. Poderiam tratar-se de notícias completamente ao lado da investigação, mas não é certamente o caso caricato d' Observador onde sob a rúbrica Caso Sócrates chegam a ter uma notícia com o título "Livro de Sócrates vendeu menos de 17 mil exemplares". Confessso que isto me causa alguma apreensão, já que o meu blog também não tem assim tantos seguidores. Estarei também em risco de ser preso?

Pior ainda foi a boquinha velada enviada por Passos Coelho, num ato que configura um misto de cobardia, desrespeito do princípio da presunção da inocência e parvoíce (que raio tinha uma situação a ver com a outra?).

Não posso deixar de referir também, o caso dos comentários efectuados por magistrados e outros agentes da Justiça no facebook. Não porque tenham valor criminal (cada um pode dizer os disparates que lhe apetecer no facebook ou num blog, como eu tantas vezes tenho vindo a provar) mas porque revelam sentimentos mesquinhos, vingativos e muito pouca idoneidade e seriedade daqueles que têm a Justiça a seu cargo. Oxalá o texto da legislação e constituição Portuguesas esteja suficientemente bem redigido para nos proteger de tais mentalidades.

Um reparo final para clarificar algumas coisas. Não acredito que Sócrates seja um santo, e reconheço até que haja indícios de que possa estar envolvido em casos de corrupção. Mas indícios não são provas, e um tribunal não é a tasca da esquina. Bem sei que não foi condenado com base nesses indícios, mas a realidade é que já ficou preso (ao prisioneiro serve de pouco o preventivamente) mais de seis meses, e tudo indica que irá ficar um ano. Não me parecem prazos razoáveis. Que acontece se, em 2016, for julgado e considerado não culpado? O MP apresenta as suas sinceras desculpas? Paga-lhe uma indemnização pelo ano de vida em cativeiro? Certamente que muitos argumentarão "ah mas é assim que está escrito na lei, e passa-se isso todos os dias com prisioneiros Zé Ningúem e agora só se fala no assunto porque ele é famoso". Tremo quando penso que isso é provavelmente verdade. Quantos inocentes terão ficado meses na prisão porque ainda se estava a investigar o caso? Convém recordar que mesmo o prevaricador, até considerado culpado em julgamento, é inocente aos olhos da lei. Urge alterar a legislação que permite que isto aconteça.


Filipe Baptista de Morais


sexta-feira, 22 de maio de 2015

Como na Escolinha

Quem já viu imagens de sessões parlamentares sabe que lá se vive um ambiente digno do maior clássico futebolístico. Os deputados agregam-se por cores, como num Benfica-Porto. Tal como num jogo de futebol uma bancada explode em aplausos quando um dos seus jogadores faz uma investida interessante, assobiando e vaiando furiosamente quando são outros a ter o protagonismo. Só faltam os cachecóis e os cânticos.

Esta sectarização tem, pelo menos, duas consequências nefastas. A primeira é um certo desprestígio da Assembleia e da Política em geral, devido à peixeirada que por lá reina. A segunda é o vincar das diferenças e animosidades inter-partidárias. Estarmos rodeados de papagaios e/ou pessoas que concordam connosco, separados dos outros por algum barreira, leva a que naturalmente nos tornemos mais fanáticos na nossa crença e menos propenso a aceitar (ver sequer) a dos outros.

Curiosamente uma possível solução para isto é há muito praticada nas escolas, desde a pré-primária. Qualquer educador infantil sabe que a melhor forma de integrar crianças diferentes, seja a distinção derivada da cor da pele, do comportamento, do desempenho escolar ou do meio socio-económico, é misturá-los na sala de aula. Pessoalmente acredito seriamente que se devia fazer o mesmo com os deputados, isto é, aleatorizar os assentos no início de cada sessão. Seria mais difícil acusar os adversários políticos das mais ignóbeis (e absurdas) intenções e feitos se eles estivessem ao nosso lado. Seria mais difícil ir na corrente do nosso partido (sem pensar realmente no assunto) se esta estivesse dispersa por vários laguinhos. Seria até mais difícil aplicar a incompreensível disciplina de voto já que, sem o líder parlamentar a cotovar-nos e segredar-nos ao lado, teríamos que decorar em cada qual a nossa posição em cada temática, obrigando-nos ainda a utilizar a nossa cabecinha (sim, não a perdemos quando aderimos a um partido!) sempre que surgisse uma questão fora das previstas.

Em suma, os deputados ganhariam mais existência enquanto indivíduos com ideias e personalidades próprias, deixando de ser apenas adeptos e apoiantes de um certo símbolo.


Filipe Baptista de Morais
14/05/2015

sábado, 9 de maio de 2015

Ensino Básico

Hoje decidi escrever sobre (cinco) tópicos que, na minha opinião, deveriam ser inseridos (e/ou aprofundados) no programa de escolaridade obrigatória. Sem mais demora:

  1. Administração pública e cidadania. Parece incrível mas na esccola aprendemos mais sobre a organização da Roma ou Grécia antigas do que sobre a actual. Poder-se-ia considerar que tal não é necessário, já que aprenderíamos isso noutro lado, mas penso que a realidade nos mostra o contrário. Quantos de nós sabem enumerar os poderes, responsabilidades e meios de financiamento da assembleia da república, do presidente da mesma, do presidente da república, do tribunal constitucional ou de uma mera autarquia? Ou pode explicar (sem se enganar) os mecanismos de IRS? Grande parte do tão badalado afastamento dos Portugueses (e Europeus) em relação à política deve-se  a genuíno desconhecimento e incompreensão.
  2. Saúde. Há aqui dois pontos distintos a fazer. O primeiro é o de ensinar alguns cuidados de saúde básicos, como o sejam o tratamento de uma queimadura ligeira ou uma dor de cabeça. Também seria interessante incluir aqui formação básica de socorrismo (e não, esta não tem que custar fortunas).. Mas mais importante que isso seria, a meu ver, transmitir informação que levasse as pessoas a fazer melhor uso do SNS. Queixamo-nos frequentemente das urgências estarem entupidas com maleitas ligeiras, mas onde é que foi alguma vez explicado às pessoas o que é ou não uma urgênci? Não podemos esperar que essa percepção surja naturalmente. Ainda menos quando a maior parte das comunicações por parte dos profissionais de saúde, movidas por instinto de protecção, correctice política ou genuína preocupação, insistem para que as pessoas se desloquem ao Hospital ao menor sinal de que algo está fora do normal. Mas há outros problemas que advém da ignorância do cidadão comum neste ramo. A revista da ordem dos médicos, na sua edição de Março, chega a considerar mesmo que uma das causas para o aumento da violência (física e não só) contra profissionais de saúde se deve ao facto de as pessoas obterem online informação (errada ou deslocada) que as faz criar expectativas irrealistas. Ora, o século XXI não vai voltar atrás. A única forma de combater a desinformação na Saúde é precisamente disponibilizar ao público em geral informação de qualidade através de canais oficiais.
  3. Estatística. Não me refiro aqui a saber contar, calcular fracções ou os conceitos de média e mediana (eram muitas pessoas não os saibam explicar ou distinguir). Nem me refiro a conhecer distribuições estatísticas (normal, Poisson, etc...). Refiro-me a saber analisar/comentar estatísticas. Qualitativamente, sem fazer contas. Perceber as limitações da metodologia de um estudo ou a validade das suas conclusões. Perceber a relevância (ou falta dela) de certos números. Perceber como as estatísticas podem ser manipuladas para fazer passar esta ou aquela mensagem (não confundir com mentir ou adulterar dados).
  4. Lógica. À semelhança do ponto anterior, também a lógica já é abordada numa disciplina (neste caso filosofia). No entanto acho que o foco está muito mal direccionado. Ao invés de analisar frases (ou conjuntos de premissas + conclusão) e de nomear as falácias lá presentes, os alunos deveriam ser capazes de pegar num discurso político ou numa notícia e perceber que afirmações/conclusões são falaciosas. Penso que a forma actual de ensino da lógica passa a mensagem (errada) de que, para verificar se uma afirmação é logicamente válida, é necessário conhecer exaustivamente todas as falácias lógicas e rastreá-las, uma por uma, até concluir que nenhuma está lá presente. Pesno que é possível e desejável uma abordagem muito mais directa e intuitiva à verificação lógica. Finalmente, ao aplicar a lógica ao mundo real, acho que seria importante realçar de forma enfática que a validade lógica de uma conclusão nada tem a ver com a sua veracidade ou falsidade.
  5. Método científico. Este ponto acaba por ser uma mistura dos últimos dois, mas dada a sua relevância achei que merecia o destaque. Apesar de as teorias de Popper serem leccionadas em Filosofia, a verdade é que a maior parte da população revela um desconhecimento assustador em relação àquilo que se chama o método científico, os seus pilares base e as suas limitações. Penso que isso se deve em grande parte ao facto de este ser anunciado como as ideias de Popper, conferindo-lhe uma espécia de teor histórico que não apela minimamente à maior parte dos alunos (para além de favorecer o tradicional método de estudo por marranço). Fosse ele anunciado como é assim que hoje se faz investigação e se tomam decisões, na Saúde,, na Educação, na AP, etc... haveria um muito maior interesse pelo assunto. É ainda certamente necessário enfatizar (muito mais) a diferença entre correlação e causalidade, e a impossibilidade de provar esta última. Na realidade, deveria ser bem enfatizada a impossibilidade  de provar a maior parte das coisas. Sem dúvida que nos levaria a olhar de forma muito mais crítica para muitos artigos de jornal, e mesmo publicações científicas.

Filipe Baptista de Morais

sábado, 11 de abril de 2015

Greve (sim, outra vez)

O tema não é novo a este blog, mas nem por isso deixa de ser actual. As greves na função pública sucedem-se, sendo de momento a greve conjunta (agora separada) da Metro e Carris aquela que mais tinta faz correr nos jornais, assim como mais queixumes suscita nas população. Começarei por fazer um curto comentário a essa greve em particular, partindo depois para considerações mais gerais em torno do direito à greve (*).

Essa greve é, na minha opinião, uma enorme falta de respeito pelos restantes trabalhadores, assim como um claro abuso do direito à greve. Por muitas semelhanças que possam ter, a Carris e a Metro são empresas diferentes, com trabalhadores diferentes e, portanto, lutas diferentes. Esta junção de greves mais não é do que uma junção de poder sindical com o intuito de maximizar o impacto das mesmas sobre o utente. Pior, mais uma vez os verdadeiros argumentos/razões permanecem escondidos debaixo de uma tão fofinha quanto politicamente correcta (e falsa, já agora) defesa do serviço e do utente (*2). Deixem as lutas do utente para o utente, e respectivos meios. E por amor de deus, deixem de fingir que nos estão a representar quando nos lixam a vida.

Atenção que não em pronunciei sobre a existiência de motivos (não abertamente revelados) que justifiquem as duas greves (separadas). Apenas critico a sua junção e a utilização recorrent do serviço e dos utentes (que são, na verdade, o único prejudicado com estas greves) como justificação das mesmas.

 Quem já leu aqui textos sobre a Greve pode ter ficado com a impressão de que defendo a abolição da mesma. De facto, embora reconheça que a abolição do dito direito possa parecer bastante extremista, acho que deveria ser pensada, e que não se deveria apelidar de fascista quem sequer sugere tal exercício de raciocínio. Passo a explicar porquê.

Qualquer discurso inflamado sobre a defesa do direito à greve começa por dizer que este é um direito fundamental e inalienável (soam tão bem juntos, estes dois adjectivos) dos trabalhadores. Mas quem vêm notícias sabe que as greves ocorrem quase exclusivamente no sector público ou quase-público (designo assim empresas tão grande que se assemelham a um Estado na forma da gestão, estando muitas vezes associadas a, por exemplo, contratações colectivas). Os restantes trabalhadores não fazem greve. E, no entanto, sobrevivem. Isto só por si deveria chegar para concluir que o direito à greve tem muito pouco quer de fundamental quer de inalienável.

Mas não fazem greve porquê? A resposta mais simples é: por medo de represálias. Numa PME, fazer greve seja porque motivo for não vai obviamente cair bem junto das chefias. Assim, ainda que a legislação proíba que o trabalhador seja alvo de represálias por ter exercido o direito à greve, este vai sentir um (muito justificado) medo de ver a sua progressão na carreira (ou mesmo a manutenção do seu posto de trabalho) ameaçada, ainda que esse ataque seja justificado com outros motivos. Dito desta forma parece que estes trabalhadores estão de facto sujeitos a uma enorme exploração e que, ao contrário do raciocínio que deu origem a estes parágrafos, se deveria trabalhar no sentido de tornar a greve mais acessível a eles. No entanto e curiosamente, isto vai contra a linha de argumentação por detrás da maior parte das greves: a de que o Estado é o pior patrão de todos e que os trabalhadores públicos não têm as condições ou os direitos que os seus congéneres que não fazem greves.

Um capitalista de gema talvez argumentasse que um trabalhador descontente de uma PME iria à procura de outro trabalho. Diria até que não faz sentido querer manter uma relação empregador-trabalhador em que um não está contente com o outro. Sendo que cada um tem necessidades e valências diferentes, converger-se-ia assim para um melhor equilíbrio onde esse trabalhadorr encontraria um emprego onde se sentisse melhor e, por outro lado, o seu anterior empregador arranjaria outro trabalhador que gostasse das condições oferecidas. Esta é, obviamente, uma visão extremamente simplista do mercado de trabalho, em particular numa altura em que a taxa de desemprego apresenta níveis altos. Pode ajudar-nos, no entanto, a encarar a relação trabalhador-empregador como uma simbiose e não como um permanente conflito (a verdade, como sempre, está algures no meio). E chama-nos também a atenção para o seguinte: é difícil reinvindicar melhores condições de trabalho (salários, horários, etc...) quando há uma enorme fila de pessoas desesperadas por obter as mesmas condições que nós rejeitamos.

É também preciso analisar a questão da greve do ponto de vista das expectativas do trabalhador. Um pouco de teoria de jogos, se quiserem. No privado, tipicamente, uma greve faria a empresa perder dinheiro. No entanto, tal dificilmente faria os patrões abrir os cordões à bolsa. Isto porque, por um lado, eles não quereriam abrir um perigoso precedente, dando a entender que cederiam sempre que os trabalhadores fizessem barulho suficiente nas suas reinvindicações. Por outro porque, estando a balança de poder desiquilibrada, é mais fácil à empresa substituir o trabalhador do que o contrário.

A situação é muito diferente no público. Primeiro porque as regras do jogo são bem distintas com, por exemplo, uma muito maior rigidez de quadros e distanciamente trabalhador-empregador. Há também todo um libertarianismo que apenas sentimos ao gastar o dinheiro dos outros. Isto é, um político oportunista e demagogo (ever seen one?) facilmente cederá a reinvindicações para tirar manifestantes descontentes das ruas, já que estes lhe estão a tirar votos e o dinheiro para financiar essas mesmas reinvindicações não lhe vem do bolso. Isto costuma ser particularmente notório na proximidade de eleições. Mas há ainda outra questão; quiçá mais importante. Mesmo tendo apenas o interesse nacional em conta, pode ser proveitoso (para o país) aceder a reinvindicações, ainda que não se concorde com elas. Isto porque o impacto de algumas destas greves (em particular do sector dos transportes) na economia pode ser maior que o de ceder; isto é especialmente verdade se pensarmos que as greves podem ter um carácter periódico até que as suas reinvindicações sejam ouvidas.

O raciocínio acima conduz a um dos maiores problemas das greves na função pública, e que já abordei neste espaço: o de serem realizadas (e terem efeitos) pelos motivos errados. Assim, o objectivo de uma greve no sector público não é o de alertar o estado (nem o público em geral) para os problemas dos trabalhadores, mas sim gerar descontentamento geral e não direccionado. Uma greve não produz efeitos pela validade das suas reinvindicações (muitas vezes nem sabemos quais são...) mas sim porque as pessoas ficam insatisfeitas com o cheiro a lixo não recolhido nas ruas ou com a impossibilidade de estarem com a família no Natal. Isto gera, obviamente, descontentamento; curiosamente a maior parte do mesmo é direccionado aos grevistas. Contudo, a parte que sobra para a classe política é muitas vezes suficiente para a forçar a agir, servindo assim o interesse dos (agora odiados) grevistas. O único prejudicado nestas situações é obviamente o cidadão comum, já que o Estado, não sendo uma empresa privada, não sofre com a queda dos lucros (por vezes até poupa dinheiro, como no caso dos transportes). Um excelente exemplo de como o objectivo principal das greves é causar transtorno ao utente (de forma a gerar descontentamento no mesmo) e não ao empregador é o de, nas greves dos médicos, estes serem aconselhados (e incentivados) pelos seus sindicatos a não avisar os pacientes de que as suas consultas não serão realizadas, naquilo que considero ser uma falta de consideração (e respeito) absolutamente atroz. As greves no sector público são, assim, uma forma particularmente cínica e perversa de protesto/reinvindicação.

Há ainda uma questão que considero importante. A lógica da greve está, a meu ver, enraizada em factores que mudaram drasticamente nos últimos anos. A greve era utilizada como uma forma pressão financieira mas também, e talvez essencialmente, de mostrar às pessoas as condições de trabalho de trabalhadores que estavam escondidos dos olhos do público em geral (a labutar numa mina ou fábrica perdida algures), conseguindo assim solidariedade social e ganhando apoiantes à sua causa. Ora a pressão financeira, junto do Estado, se funciona é pelos motivos errados (como vimos acima). Já a greve enquanto meio de representatividade está totalmente ultrapassada, na era das televisões e da Internet. Isto torna-se óbvio quando temos greves sucessivas em que os motivos nem são revelados, ou são falsos/inválidos (como a qualidade do serviço e os direitos do utente de que já falei acima). Penso que hoje em dia a greve é vista como uma consequência directa do nosso descontantamento (ie: estou descontente, logo faço greve), sendo por isso um fim em si mesmo e não um meio. Isto levou à sua descaracterização e degradação.

Uma última nota a respeito das pressões, sendo que aqui pressão denomina tudo aquilo que influencia a decisão do trabalhador em aderir (ou não) à greve e que seja distinto da sua concordância com os motivos da mesma. Fala-se muitas vezes nas pressões exercidas sobre os trabalhadores para que não façam greve. Estas podem vir sob a forma de ameaças (expressas ou intuídas) mas também simples pressão financeira, pelo simples facto de os trabalhadores não receberem o salário correspondente aos dias de paragem (embora seja comum os sindicatos re-embolsarem os aderentes). Mas das pressões a favor da greve raramente se fala nos meios de comunicação social (ainda que estas sejam frequente tema de conversa de tasca/café), em mais um exemplo da submissão do jornalismo (e da política) ao politicamente correcto. Estas assumem algumas expressões óbvias, como sejam dormir mais umas horinhas de manhã (nas greves parciais) e ter mais dias de descanso/férias, particularmente quando a greve calha a uma sexta ou segunda. Mas também surgem sob formas que, à partida, não nos ocorreriam, como sejam a intimidação. Vejamos o caso das greves dos professores à vigilância das PACC, por exemplo, em que os colegas não aderentes eram recebidos por turbas (que como sabemos tendem a ser inflamadas) com slogans como Não aceites ser carrasco dos teus colegas. Esta pressão psicológica tende por vezes a adquirir contornos de ameaça física, como no caso recente da greve na Patinter. Ainda que não se chegue a este extremo, e que se perca um ordenado de um dia, convenhamos que é muito mais conveniente fazer um fim-de-semana prolongado do que ir para o trabalhando, passando pelo caminho por uma turba acusatória, tendo nas semanas seguintes de conviver com os mesmos colegas que a compõem.

Com todo este texto não pretendia demonstrar a inutilidade da greve (não o é), nem defender o fim do direito à mesma. Pretendia sim, e espero tê-lo conseguido, demonstrar que este não é um direito tão básico quanto possa parecer (há alternativas para atingir o mesmo fim) e que não se deve cortar pela raíz qualquer debate em torno da necessidade da existência desse direito, sob o pretexto de que tal seria fascista ou anti-progresso. Vou agora sugerir algumas medidas que, a meu ver, serviriam para resolver alguns dos problemas que identifiquei anteriormente:

  • As datas das greves não seriam escolhidas pelos trabalhadores/sindicatos. Isto terminaria com a clássica greve de sexta/segunda-feira, com as greves marcadas para alturas festivas de forma a maximizar o impacto no cidadão comum (não é essa ideia por detrás da greve) e, mais importante, com as greves cirúrgicas como é o caso da greve à vigília das PACC dos professores. Esta última é fundamental, pois a greve tem de ser sempre um instrumento reinvindicativo/negocial, e nunca uma forma nebulosa de exerção do poder executivo (legislativo até) por parte de quem não o possui;
  • Os motivos da greve deveriam ter de ser aprovados por algum tribunal arbitral, e adequadamente transmitidos ao público através da RTP e de portais oficiais do Estado. Atenção que validar os motivos não é o mesmo que concordar com eles. Assim, reinvindicar melhores salários seria, por exemplo, sempre um motivo válido para a realização de uma greve. Isto acabaria, no entanto, com as greves disfarçadas (pelo utente, pelo serviço, etc...) ao mesmo tempo que ajudaria a causa das greves legítimas;
  • Greves com o mesmo motivo teriam que ter um espaçamento temporal mínimo (de vários meses). Isto para evitar que esta seja usada como forma de chantagem (ie: Estamos de greve todas as 5ªs até que cedam às nossas reinvindicações);
  • Deveria ser obrigatória a presença dos trabalhadores no local de trabalho (ou outro a designar). Isto evitaria que os trabalhadores se sentissem incitados a aderir à greve simplesmente para usufruir de dias extra de férias. A presença dos trabalhadores poderia ser aproveitada para, por exemplo, ações de manifestação ou reuniões negociais.
Resumindo: considero que a greve é, em muitos aspectos, uma forma de luta ultrapassada e perversa, quer pelo acesso que os trabalhadores têm a ela (está disponível essencialmente para o setor público) quer pelos mecanismos pelos quais consegue resultados. A ser considerada um direito básico dos trabalhadores (como até agora) sugiro algumas alterações que, a meu ver, rresolveriam alguns dos seus problemas e devolveriam alguma credibilidade à Greve.



Filipe Baptista de Morais

(*) Este texto foi escrito antes do adiamento da greve por parte da Metro; não estranhem portanto que me refira a ela como greve conjunta.

(*2) Talvez ainda mais interessante, a Carris já marcou nova greve para dia 22. Desta vez o sindicato anunciou que "A greve será para os trabalhadores poderem participar nesta jornada de luta", sendo a referida jornalata de luta uma manifestação de protesto contra a subconcessão. Por um lado, como já referi anteriormente noutro texto, essa luta (a existir) não é dos trabalhadores mas dos cidadãos em geral, e portanto tal nunca poderia servir de motivo à greve. Por outro não deixa de ser interessante a marcação de uma greve com o intuito expresso de participar numa manifestação. Não poderiam marchar a um sábado? Enfim.

domingo, 22 de março de 2015

Desigualdades de (e diferenças entre) Géneros

O recente dia Internacional da Mulher voltou a trazer o tema da Igualdade de Direitos para cima da mesa, e deu azo a todo o tipo de notícias e intervenções. Como é um tema que, na minha ótica, é sistematicamente mal avaliado e abordado (e também como já tinha abordado o assunto noutro post que pecou por falta de clareza) decidi escrever sobre o assunto. Para explicar melhor as minhas opiniões fui compilando notícias ou artigos que serviam de exemplo a algum ponto que me pareceu importante.

Comecemos por estabelecer terreno comum e consensual. Deve existir igualdade de direitos entre homens e mulheres. Penso que muito poucos cidadãos do chamado Mundo Ocidental discordariam desta afirmação, e eu certamente que não o faria. Taambém creio ser consensual que, a nível mundial, essa igualdade está longe de existir. Em muitos países a mulher ainda nem é reconhecida como cidadã plena perdendo, entre outros, o direito ao voto. O debate e a luta pelos direitos da mulher é portanto actual e necessário, nesta perspectiva global. É a nível local que a questão parece estar mais ultrapassada.

Uma questão que considero importante realçar é a distinção entre dois tipos de desigualdade.

O primeiro é a desigualdade de direitos (daqui por diante quando falar de desigualdade apenas é disto que estarei a falar) e caracteriza-se por ter um carácter premeditado (ie: é imposto expressamente e propositadamente e não é consequência da conjugação de diversos factores, nomeadamente o acaso) e por ter enquadramento legal (ie: é reconhecido, aceite e perpretado por um Estado ou semelhante). São exemplos óbvios e claros desta desigualdade os países onde a mulher não tem direito ao voto, ou a conduzir.

O segundo tipo, a que vou chamar diferença e não desigualdade, é uma constatação empírica (factual ou não) que não é nem premeditada nem estipulada legalmente, apenas o é e é-o por causas eventualmente desconhecidas e/ou incompreendidas. Um exemplo disto são os salários médios mais baixos auferidos pelas mulheres: são um facto mas não são impostos por nenhuma política ou lei, nem são resultado da acção deliberada de nenhum agente económico.

A diferença entre estes dois conceitos é extremamente importante para esta discussão. Isto porque enquanto as desigualdades são sempre erradas e podem e devem ser resolvidos legislativamente, o mesmo não pode ser dito das diferenças. Estas não são, em si mesmas, negativas nem positivas. Mais, não sendo instauradas explicitamente, também não podem ser removidas dessa forma (eg: assim como nenhuma norma diz que as mulheres recebem menos que os homens não se pode fazer uma a dizer que receberão o mesmo). As diferenças são, quanto muito, manifestações de desigualdades.

São, no entanto, misturadas com frequência, como quando Hillary Clinton (e tantos antes e depois dela) referiu o rácio de CEOs mulher como uma violação dos direitos da mulher (ou do Homem já que, como ela refere e bem, estes são iguais para ambos os géneros). Referiu também que as mulheres são as mais afectadas nas questões de saúde e alimentação, mas aqui confesso que não faço a mais pálida ideia do que está a falar. Tanto quanto sei a esperança média de vida das mulheres é superior à dos homens em todos os países desenvolvidos, sendo uma das razões apontadas para tal precisamente a prática de melhores hábitos alimentares. E porque raio, já agora, é que toda esta lógica simplística (de ver desigualdades em estatísticas diferentes de 50%) não considera a menor esperança de vida do homem como uma desigualdade e violação dos direitos do homem?

Acho importante realçar, neste ponto, que a distinção entre diferenças e desigualdades não é feita pela intensidade ou gravidade das mesmas, mas sim e apenas pela sua essência. Dou um exemplo de cada para clarificar. Se lerem o regulamento relativo à utilização de transportes colectivos (afixado em todos os autocarros da carris) encontrarão o artigo 187º, cuja alínea b) diz que os funcionários da Carris são obrigados a prestar aos passageiros todo o auxílio de que careçam, tendo especial atenção para com as senhoras, mutilados, velhos e crianças. Esta discriminação injustificada (e, neste caso, positiva) da mulher face ao homem é uma desigualdades. É, no entanto, suficientemente irrelevante para todos a ignorarmos com um encolher de ombros (eu, pelo menos, faço-o). Já os rácios de género nos Conselhos de Administração das empresas do PSI20, questão suficientemente importante para arreliar tanta gente, são uma diferença. O facto de a distinção desigualdade-diferença não se prender com questão de grau/intensidade é também importante porque a torna absoluta e não relativa (embora posteriores considerações morais não o sejam, obviamente).

Voltando aos Direitos, estes também não estão isentos de polémica. Isto porque, embora seja consensual que estes devem ser garantidos, aquilo que se qualifica ou não como um direito já não o é. Penso até que é nesta questão, e nalgum extremar de posições, que o feminismo perde muito apoio e solidariedade. Veja-se, por exemplo, a invasão da barbearia Fígaro, que não permite a entrada a mulheres. É discriminação claro, no sentido literal do termo, tal como o é eu não me poder inscrever no ginásio Viva Fit, espreitar os balneários femininos de  ginástica acrobática ou dar entrada num lar de terceira idade. Não é discriminação no sentido negativo da palavra, nem uma demonstração de desigualdade.

Por vezes aponta-se como negativa e imperceptível o desconforto que alguns homens sentem ao ouvir o termo feminista. O feminismo não é mais do que a defesa dos direitos da mulher, dizem, e não pressupõe nenhuma agressividade ou antipatia face ao género masculino. Tudo bem, penso que isso faria de mim um feminista também. Nesse sentido sou também machista (ah pera, isso tem um significado diferente...) Mas infelizmente para a causa o feminismo não é uma organização com critérios de entrada bem definidos. Assim, muitas das posições tomadas em nome do mesmo são vistas por muitos homens (e algumas mulheres, espero) como francamente ridículas. Exemplos disso são o incidente acima referido na barbearia Fígaro, o movimento Free the Nipple (independentemente de sermos a favor ou não da legalização do topless discuti-lo em termos de igualdade de géneros é ridículo) e a reacção de Ellen DeGeneres (um dos símbolos do feminismo moderno e ocidental) ao lançamento de uma caneta para mulheres pela marca BIC. Permitam-me um pequeno comentário a esta última. Penso que até seria fácil e razoável argumentar fisiologicamente a favor da lógica de haver canetas para mulheres e homens. Mas ainda considerando que isso é irrelevante (de facto somos todos capazes de usar as mesmas canetas) não há nada de insultuoso ou inigualitário em direccionar os produtos a um público alvo mais específico com meras alterações estilísticas, ou mesmo puro marketing. Este excesso de sensibilidade no detector de discriminação/desigualdade não traz muita simpatia à causa.

Isto por si só levaria muitas pessoas a franzir o sobrolho ao ouvir o termo feminisa, mas o pior é que, não aderindo a toda e qualquer causa estapafúrdia que alguém se lembre de enfiar debaixo dessa (enorme) bandeira, um homem é imediatamente etiquetado de machista e retrógrado (para as mulheres reservam as etiquetas de submissa ou vítima de lavagem cerebral).

Para além do excessivamente amplo leque de causas, fica ainda muitas vezes implícita a ideia de uma qualquer conspiração masculina para subjugar e estupidificar a mulher, obviamente completamente descabida (ou se há deixaram-me de fora, e talvez me deva sentir insultado). Veja-se, por exemplo, a reacção de Cate Blanchett ao interesse mediático no seu vestido. É fácil explicar essa discriminação: no dia seguinte aos Óscares milhões de mulheres por todo o mundo (e muito poucos homens, ironicamente) consultavam a internet para ver quais os vestidos usados e eventuais indicações sobre tendências para a nova estação (é assim que se diz?). Quando um jornalista pára um casal na rua e pergunta ao homem (e não à mulher) qual o seu prognóstico para o Sporting-Benfica isso não é desigualdade, é o reconhecimento de uma diferença. O movimento associado ao episódio em Hollywood, Ask Her More, é também idiótico por querer dar ao meio cinematográfico uma profundidade que ele não tem. Se quiser ouvir falar de política internacional oiço um discurso do Dalai Lama, e não uns comentários de Cate Blanchett (ou Jude Law) na passadeira vermelha. Faz lembrar os concursos de misses.

Por vezes a culpabilização do homem não é tão subtil quanto isso. Leia-se por exemplo o texto de Maria João Marques, onde o ódio é quase palpável*. Ou as palavras de Emma Watson após receber ameaças (eventual ou alegadamente devido ao seu discurso feminista): Assim que defendi o direito das mulheres fui imediatamente ameaçada. (...) É muito comum as mulheres serem ameaçadas. (...) Pensei que era por isso que tinha de fazer algo para pôr fim a essas atitudes. Aparentemente Emma e o irmão também consideraram que as tais ameaças são prova da necessidade e actualidade da causa. Mas qualquer pessoa que leia jornais ou frequente fóruns online sabe que exprimir publicamente uma opinião (polémica ou não, e sobre qualquer tópico) pode levar a um chorrilho de ameaças cibernáuticas. Uma celebridade está obviamente muito mais exposta a este tipo de ataques cobardes. Mas esta questão não levanta qualquer tipo de dúvida ou debate relativamente a direitos, muito menos específicos da mulher: há legislação referente a ameaças e calúnias em vigor, quer sejam direccionadas à activista feminina quer ao sócio do Benfica.

Os tópicos mais recorrentes em relação à discriminação das mulheres são as desigualdades salariais e de progressão na carreira (rácio de CEOs, altos dirigentes políticos, etc...) como referidos nos seguintes artigos (1, 2 e 3). Por vezes mistura-se também a violência doméstica e outros tipos de violência contra as mulheres (mutilação genital etc...), como aqui. Não gosto desta mistura, e explicarei abaixo porquê. Não deixo, no entanto, de reconhecer a prevalência da violência contra as mulheres e do consequente debate em torno do tema: simplesmente não considero que seja uma questão de igualdade (chamem-lhe semântica se quiserem) pelo que também não posso deixar de criticar que coloquem essa temática sob esse estandarte (bom exemplo disso é esta notícia). Também criticável na mesma o aparente impacto que um papel representado numa série telenovelesca teve na escolha de uma emissária da UN Women. Sempre têm alguma razão os que duvidam da capacidade humana de distinguir a realidade da ficção televisiva.

Vou explicar-me melhor então. Não acho que a violência contra as mulheres deva ser chamada para a discussão da igualdade de géneros nem dos direitos da mulher porque ela já é um crime (estamos a falar de países desenvolvidos apenas, agora) e exactamente nos mesmos termos que quando exercida sobre um homem. Quando um terrorista faz um atentado e mata N pessoas não se debate sobre os direitos dos inocentes, nem se afirma que esse assassinato é uma prova da falta de direitos dos inocentes (em particular, face aos terroristas). O que não nos impede de discutir a ameaça terrorista e formas de nos defendermos dela. Na mesma lógica, quando um homem bate numa mulher isso não faz com que ela tenha menos direitos, só faz com que ele seja um criminoso. Falar de desigualdade aqui apenas faria sentido se houvesse uma permissividade legal relativamente à violência quando pratica por homens e/ou exercida sobre mulheres. A minha perceção pessoal é a de que acontece exactamente o oposto: a sociedade é muito mais permissiva relativamente à violência doméstica quando esta é praticada pela mulher (vejam este estudo por exemplo).

Voltemos então agora à questão do trabalho. Na minha opinião, esta é uma das áreas marcadas por diferenças e não desigualdades. Diferenças essas que acredito serem explicadas por factores económicos e sociais (eg: preferências pessoais) e não por nenhuma discriminação injustificada. Em relação aos salários em particular eu nunca vi nenhum estudo que mostrasse que as mulheres recebem menos para a mesma função (se alguém me indicar um terei todo o gosto em ler e adicionar uma errata relativamente a esta parte; sem ironia). Vi muitos artigos citarem estudos e a proclamarem essa conclusão, e até alguns estudos a concluírem isso sem, na minha opinião, apresentarem dados que a justifiquem. Sinceramente não acredito que tal estudo exista pois penso tratar-se de um mito. Até porque como se explicaria essa diferença? Será que nós homens temos reuniões secretas (quiçá na Fígaro) para inventar engenhosas fórmulas de discriminação sexual? Ou será subconsciente, e de tal forma poderosa que nem o contabilista repara que a sua colega de departamente recebe menos do que ele? Pessoalmente não conheço nenhuma empresa que, para a mesma função, pague mais a um homem que a uma mulher. Conheço muitas que, em média, pagam mais aos trabalhadores masculinos do que às trabalhadoras. E conheço muitas que pagam acima da média e que empregam sobretudo homens. Estas três afirmações não são redundantes nem contraditórias entre si. E todas ajudam a explicar as diferenças salariais constatadas estatísticamente, sem recorrer a planos maquiavélicos.

Como já abordei este tema uma vez e constatei que a minha opinião sobre o mesmo não ficou muito claro vou adicionar mais uns remates. Dizer que as decisões de mercado se baseiam em, precisamente, lógica de mercado não significa que não se possa ou não se deva fazer nada para as alterar. É por exemplo óbvio, na minha opinião, o impacto que a (potencial) gravidez tem na carreira da mulher. Este pode ser diminuído (embora em termos de progressão de carreira não acredito que se possa eliminar completamente, pelo menos sem abdicar do capitalismo enquanto modelo económico) de várias formas, como sejam a nivelação dos períodos de licença de maternidade/paternidade e o combate aos papéis de género (abaixo voltaremos a isto) que ditam que, por exemplo, seja a mulher a faltar ao trabalho em caso de doença dos filhos. Pretendo apenas desmistificar a ideia de que as mulheres são discriminadas enquanto tal. Decisões baseadas em perfis e personalidades (eg: postura mais agressiva e dominadora por parte dos homens, muitas vezes associada a posições de liderança) serão mais difíceis de influenciar, embora estes também possam (até certo ponto) ser manipulados.

Referi acima os papéis de género, e vou aproveitar a deixa para voltar ao início deste já longo texto e à distinção diferença/desigualdade. Defendi que as diferenças não são intrínsecamente negativas, nem se eliminam explicitamente. Mas isso não significa que não possamos actuar sobre elas, nem que não o devamos fazer. O fulcral, na minha ótica, é perceber o porquê da diferença e, quando justificável, actuar sobre essa causa. O mal (quando existe) reside assim não na diferença mas na sua causa, e é aí que tem de ser atacado, Podemos considerar, por exemplo, ainda prevalece a imagem da mulher dona-de-casa, com consequente desproporção na distribuição das tarefas domésticas. Penso que quase todos concordamos que esta imagem é negativa, e portanto faz sentido tentar alterar os papéis de género nesse sentido. Saliento que, na minha opinião, o problema reside na imagem em si, e nas mensagens subliminares presentes na sociedade que a fazem propagar-se no tempo enquanto status quo, e não na desproporção da distribuição das tarefas domésticas. Esta só é importante por nos dar a motivação necessário para atacar o problema da imagem; se esta fosse inconsequente, teríamos coisas mais importantes em que pensar.

Um amigo enviou-me este link para documentação de referência  (falamos de orientações governamentais) que pretende explicar como essa mudança de paradigmaa base pode (e vai) ser induzida na geração seguinte (por exemplo evitando que, nos manuais escolares, a grande maioria das imagens ilustrativas de tarefas domésticas representem mulheres) e que, embora vergonhosamente ainda não tenha lido, acredito ter conteúdos extremamente interessantes.

Mas o assunto torna-se rapidamente mais pantanoso. Os papéis de género e as expectativas da sociedade explicam muita coisa, mas não são os únicos responsáveis pelas diferenças entre homens e mulheres. Parte dela é genética (se tiverem tempo aconselho a visualização deste programa Norueguês). Mas ainda que toda ela fosse orquestrada pela sociedade, não podemos ser ingénuos ao ponto de acreditar que existe um ponto neutro de influência da sociedade. Especular portanto quais deveriam ser as escolhas e comportamentos de homens e mulheres nesse ponto neutro e adaptar a sociedade até o atingirmos é inútil, para além de ter contornos de Brave New World. É por isso que considero perigosas, e negativas, medidas baseadas em objectivos (eg: aumentar número de mulheres CEOs, aumentar rácio de mulheres em IT) em oposição a medidas directamente direccionadas às causas, sem preocupação com os seus efeitos. Pegando no exemplo do IT, não há nada de intrínsecamente negativo em haver poucas mulheres na área (e porque não combater a desigualdade verificada nos rácios de género entre cantoneiros do lixo?), nem nestas preferirem outras áreas. Não percebo, portanto, a necessidade de implementar medidas para alterar essa realidade, nem afirmações como as de Vera Jourova (Comissária Europeia para a Justiça, Consumo e Igualdade de Género): é preciso que desde cedo as raparigas sejam incentivadas a prosseguir estudos nas áreas tecnológicas. Dizer que o rácio actual está errado significa que se quer atingir outro. Mas qual? 50%? Ou um qualquer rácio (chamemos-lhe basal) que algum estudo xpto dirá tratar-se da taxa natural, quando subtraída a influência da sociedade? E porque razão é a sub-representação das mulheres no IT e noutras áreas tão problemática, se sub-representações semelhantes de homens noutras área não o são?

Mantendo o exemplo das mulheres no IT, poderia contestar-se o estereótipo de género em torno da área e, por aí, justificar a sua manipulação deliberada. Mas fará isso sentido, visto não existir nada de negativa com os rapazes gostarem mais de PCs? Não estaremos a tornar-nos perigosamente manipuladores ao exigir que 50% dos técnicos de IT representados nos manuais escolares sejam mulheres, quando sabemos muito bem que tal não corresponde à realidade? Tanto na história como na ficção distópica, a distorção e manipulação da realidade é um dos sinais de um estado totalitarista.

Talvez alguns frequentadores assíduos deste espaço se recordem e estranhem o meu louvor à iniciativa/empresa Goldie Blocks, que pretendia (para além de fazer dinheiro) precisamente tornar as engenharias mais apelativas às mulheres através de brinquedos alegóricos adaptados para o sexo feminino (espero que a Ellen não leia isto). Acontece que isso é uma iniciativa privada, que obedece a uma preferência pessoal (a fundadora gostava de ter mais amigas engenheiras, ou algo do género) e não a alguma normalização de estatísticas. Eu, enquanto trabalhor da área e ex-aluno de uma faculdade de engenharia, também gostaria de ter e ter tido mais colegas mulheres. Daí que aplauda essa iniciativa, assim como a mais recente Miss Possible. É, na minha opinião, necessário algo muito mais forte que gostava que houvesse mais mulheres em IT e homens em enfermagem, nomeadamente fundamentadas considerações morais, para justificar a intervenção do Estado neste processo de re-programação. Porque não tenhamos ilusões: não é possível não interferir no desenvolvimento das crianças e indivíduos, apenas podemos alterar o sentido dessa mesma influência. E, excepto nos já referidos casos de força maior, prefiro uma máquina inocente (no sentido de não pensada, sem criador ou propósito) derivada da nossa cultura e tradição aos caprichos de um Governo (ainda por cima nestas temáticas muitas vezes submissos aos caprichos de quem grita mais alto ou com mais histeria) que acha que as raparigas estão sub-representadas aqui ou acolá.

Tudo isto não passaria de curiosidades e notícias irritantes, não fosse estar a gerar-se em Portugal (e na Europa) um perigoso sentimento de necessidade de acção, ainda que mal justificada ou direccionada. A questão das quotas (nos assentos parlamentares, nos conselhos de administração, etc...) é, a meu ver, o cúmulo da ironia: em nome da não discriminação de género no trabalho (leia-se: ao contratar, não olhar ao sexo do candidato) obrigam a que tenhamos essa mesma característica em conta. E tudo, claro, baseado na dita taxa basal (neste caso creio que 50%) de representatividade. Pior que isso, na minha opinião, são declarações como as de Ana Gomes: É altura de Portugal ter uma mulher Presidente da República. (Já tinha ouvido dizer o mesmo relativamente à presidência da Comissão Europeia, antes da eleição de Juncker). Ora quanto mais importante um cargo menos se deveria olhar para o género (per se) ao ponderar candidatos; e obviamente que não há tempos para eleger mulheres e outros para eleger homens. Também recentemente uma notícia citava ou um dos membros do novo conselho de administração da RTP ou um representante do Governo (infelizmente não guardei o link, e a minha memória não me permite precisar) a congratular-se pela inclusão de uma mulher no novo conselho de administração da RTP e a referir que isso deveria ser encarado como um exemplo. Ora ter mulheres um conselho de administração não é prova de avanço civilizacional. Chamar a atenção para o facto e usá-lo como se fosse é, ironicamente, prova do exacto oposto (além de potencialmente desprestigiante e desmotivador para a senhora em causa). Já a intervenção de António Costa quero acreditar que não passou de uma (mesmo muito má) piada sobre um assunto serio.

Por último, deixo ao leitor aquilo que considero ser uma pérola do excesso de zelo na procura de igualdade de direitos: o Guia para uma linguagem promotora da igualdade entre mulheres e homens na Administração Pública (aprovado em 2009), e pretendendo corrigir a terminologia utilizada na AP de forma a evitar ou prevenir a discriminação. Assim, saiba o leitor que a fim de promover a igualdade deve dizer pai e mãe em vez de pais, trabalhadores e trabalhadoras (os políticos já adotaram esta e outras há muito, sendo também comum a inversão para trabalhadoras e trabalhadores) em vez de simplesmente trabalhadores, a pessoa que requer em vez de requerente (esta é mesmo muito boa...), a gerência em vez de o gerente (nem têm o mesmo significado, como o próprio guia reconhece...), Família Silva em vez de Sr./a Silva, entre outras.

Resumidamente, considero que existe uma certa histeria totalmente desnecessária (se quiserem, desactualizada ou deslocada) em torno das desigualdades de género, que advém essencialmente de o feminismo (enquanto movimento não organizado) colocar sob a sua bandeira várias temáticas que não estão directamente relacionadas com o tema, para além de confundir diferenças com desigualdades. A colonista d'Observador escreveu há pouco tempo Saudades do tempo em que éramos livres e não o sabíamos, onde aborda ao de leve alguma das temáticas (foi onde encontrei também o Guia acima referido). Este texto poder-se-ia chamar O tempo em que éramos iguais e não o sabíamos.


Filipe Baptista de Morais

*Na realidade o texto menciona um estudo que me tinha parecido interessante, visto alegadamente indicar um enviesamento de genéro na correcção de provas de Matemática. Infelizmente não consegui aceder ao estudo original (bom, sem pagar pelo menos) para atestar a relevância do efeito e a robustez da metodologia. (Entretanto deparei-me com alguém que o fez, e não achou grande coisa. Aparentemente nem os autores acharam as diferenças significativas).

domingo, 15 de março de 2015

Alienação

Deparei-me recentemente com esta entrevista a Ribeiro e Castro no jornal I. A entrevista é longa pelo que me vou centrar em dois pontos que considero fulcrais.

A entrevista é marcada por um forte tom anti-partidário, naquilo que me parece hipocrisia interesseira. Seja de que forma for, há críticas destinadas a revelar os podres da máquina partidária que, na minha opinião, revelam tanto ou mais sobre quem as proferiu. Falo, em particular, de quando refere que votou/aprovou propostas sem as conhecer. A disciplina de voto é, a meu ver, desprezivelmente anti-democrática e deve ser combatida. No entanto, é um mecanismo intra-partidário e não tem representação legal. Isto é, quem a violar apenas enfrenta consequências a nível de progressão no partido. Isso significa que sempre que um (ex-)deputado, com ar de cordeirinho, diz que era contra determinada medida mas votou noutro sentido devido à maléfica máquina Partidária, aquilo que está na realidade a dizer é que colocou os seus interesses pessoais de carreira à frente dos do país, que traíu  a confiança dos que o elegeram.

Esquecendo agora a parte pessoal e focando-me nas ideias. Ribeiro e Castro defende uma reforma do sistema eleitoral, com a criação de círculos uninomiais e representação no parlamento dos votos em branco. Não vejo como a segunda ajudaria a fosse o que fosse, excepto se acreditarmos em demagogias simplistas como forçaria os partidos a reformarem-se. Right. Logo a seguir à reforma do Estado, suponho. (Sei que ainda sou novinho mas já não me recordo de umas eleições em que não se reformasse o Estado) Já a primeira poderia, de facto, levar a uma maior proximidade entre o cidadão e o deputado, e logo a uma maior responsabilidade do último. No entanto complicaria ainda mais o sistema eleitoral e a estrutura organizacional do Governo, o que a meu ver seria extremamente negativo.

Na minha opinião o afastamento entre o cidadão e a política tem aumentado não devido a alguma podridão ou corrupção dos partidos (caso em que teríamos uma enchente de votos a transitar para partidos fora do eixo governativo, o que não tem acontecido *) mas sim devido à crescente complexidade do sistema representativo, que o cidadão comum (no seu tão badalado quotidiano frenético) não tem tempo de estudar e compreender. A verdade é que a  maioria de nós não conhece por completo as funções de cada cargo ou orgão administrativo, o que tem ficado ultimamente muito claro em relação a, por exemplo, ao cargo de Presidente da República. A simplificação da Administração e a sua inclusão (urgente!) do seu funcionamento nos programas escolares poderia fazer muito por esta causa.

Claro que os políticos e os jornalistas têm muitas responsabilidades no cartório, esgotanddo o nosso precioso tempo com discursos e análises vazias de ideias ou propostas (tema que abordarei num texto posterior). Mas, num certo sentido, eles dão-nos aquilo que queremos ou pedimos. O cidadão não pode assim, de todo, desresponsabilizar.se da sua própria alienação.


Filipe Baptista de Morais

*Muitos talvez estejam a gritar "Syriza" ou "Podemos" neste momento, achando que me esqueci deles. Não esqueci. Mas sejamos francos:  o Syriza chegou ao Governo não devido a corrupção, podridão ou vazio ideológico do eixo governativo grego, mas simplesmente porque a Grécia ficou sem dinheiro.