domingo, 12 de julho de 2015

Voto Democrático

Penso que já abordei o tema por estas bandas, mas infelizmente não o consegui repescar do fundo dos arquivos. Refiro-me à temática dos sistemas de voto, e do impacto que têm na democracia.

Hoje quero falar de um sistema em particular, referido aqui. Nesse sistema, aparentemente utilizado na votação do Orçamento Participativo de Cascais, cada eleitor tem dois votos para distribuir como lhe aprouver. Não gosto do sistema, e a título de exemplo daquilo que acho que esse sistema pode trazer de mau cito precisamente a grande história que eles usam para o promover:

Estava uma sala cheia de gente. Havia um grupo grande que queria algo para uma escola e havia um grupo grande que queria algo para um parque. E estava lá um tipo sozinho, um professor primário apanhado no meio daquilo, cuja ideia era ligar diferentes vilas ao centro da cidade, não sei se através da Internet ou de transportes. A ideia era mesmo muito simples, mas ele apresentou-a muito bem. Se houvesse um sistema de um só voto, ele teria perdido, mas os dois grupos grandes gostaram dele e todas as pessoas deram o seu segundo voto ao projeto dele. Acabou por sair vencedor. Com uma simples mudança, dar mais um voto a cada pessoa, podem criar-se consensos.

Ora bem. Chamemos A e B a cada um dos grupos grandes e P ao grupo mais pequeno "liderado" pelo dito Professor. Os comentários finais à história sugerem que o desenlace (vitória do grupo P) foi o mais positivo possível (no sentido democrático da palavra) e que tal não seria atingível com o sistema usual de um voto por pessoa, provando assim a superioridade do sistema proposto. Mas será mesmo assim? Vou dividir a minha contra-argumentação em dois cenários, já que para mim não ficou 100% claro se o 2º voto era obrigatório ou opcional. Assim, critico primeiro o sistema em que esse segundo voto é obrigatório e depois a situação oposta.
  • 2º Voto Obrigatório. Inicío a minha crítica a este cenário com um exemplo centrado na situação em análise. Imaginemos que sou apoiante do grupo A. Sei, por sondagens ou burburinho, que o meu grupo corre o risco de perder as eleições para o grupo B, que também tem muito apoiantes. Logo, e independentemente das minhas reais preferências, votarei A+P, com receio de dar votos ao grupo B (que julgo ter hipóteses de vencer o meu grupo). Os apoiantes do grupo B seguiriam o mesmo raciocínio, votando B+P. Resultado, mesmo que ninguém (excepto o Professor que originou o movimento) apoie de facto  P, o sistema leva a que este chegue à vitória. Este problema é na, realidade, o inverso de um ao qual estamos mais habituados: o voto inútil. No caso do voto útil, como todos sabemos, o eleitor não vota no partido mais pequeno pelo qual tem preferência mas sim num dos maiores, com receito de que o seu voto seja inútil. Nesta situação, a que passarei a chamar de voto inútil, o eleitor muda o seu (2º) voto de um partido muito votado (mas que não é a sua 1ª preferência) para um menos votado com receio de que o seu voto seja útil. Pode parecer que o problema se põe por termos apenas três candidatos, mas não é verdade. Consideremos as nossas eleições legislativas. Um apoiante do PS nunca escolheria em 2º lugar a coligação PaF, já que isso poria a sua vitória em risco, e vice-versa. Assim, todos esses segundos votos seriam deslocados para partidos pequenos, considerados como sem hipóteses de vitória (o nosso P do caso anterior). Corríamos assim o sério risco de ter partidos pequenos largamente sobre-representados (eventualmente vencendo até as eleições) devido ao simples receio de canalizar votos para os adversários mais directos. 
  • 2º Voto Opcional. Esta parece uma estratégia vencedora: afinal, as pessoas podem simplesmente optar por não usar o seu 2º voto, convergindo assim para o método usual. Mas tem, na realidade, um grande problema que é o valor dado ao 2º voto. O texto referido parece sugerir que o 2º voto vale o mesmo que o primeiro. Mas como podemos assim exprimir a nossa preferência de um face ao outro? Poderíamos, suponho eu, escolher nós próprios o peso a atribuir a cada voto. Mas as nossas preferências tendem a ser qualitativas e não quantitivas, sendo difícil pensar algo como as minhas preferências dividem-se em 70% para A, 20% para B e 10% para P. Mesmo que fossemos capazes de tal exercício, iríamos aplicá-lo? Dado que o meu voto não pode valer mais que o de outra pessoa, a soma das minhas duas partes teria de ser 100%. A lógica do voto útil não ditaria então que renunciasse a utilizar o meu 2º voto?
Cito agora um comentário feito à notícia d'Observador referenciado acima:

Que bom, também acho que a democracia precisa de evoluir! Parabéns Cascais. Gostei de conhecer o projeto D21.
Eu gostava que nas eleições nacionais cada eleitor pudesse distribuir 10 cruzinhas, assim podia compor a minha assembleia da república, com os vários partidos na proporção que acho correta. Votos negativos, nunca tinha pensado, mas também me parece interessante.


Este comentário vai em linha com o projecto Democracia 2.1, que inspirou o sistema de votação de Cascais. O que propõe é, no fundo, que cada pessoa tenha N votos (digamos, por exemplo, N = 100) e que os distribúa da forma que entender. Pode ser muito inovador e parecer um passo em frente na liberdade democrática, já que dá mais liberdade ao eleitor. Mas, pessoalmente, não acho que seja uma boa ideia. 

Em primeiro lugar, e para pegar no comentário que tão bem expressa a ideologia por detrás do sistema de voto proposto (sem ironia de qualquer espécie), não creio que faça sentido o eleitor compor a sua assembleia da república com os vários partidos na proporção que achar correcta. Cada partido tem a sua ideologia e, tipicamente, o eleitor é  chamado a escolher aquela onde se revê mais. É certo que podemos apoiar o partido A nalgumas matérias, e o B noutras. Mas isso não seria reflectido na nossa escolha de dar 60 votos ao partido A e 40 ao partido B, já que em lado nenhum estaría explícito em que áreas concordávamos mais com o partido A e quais as em que apoiávamos B. Assim, não faz sentido dizer que quero um naco de PS em cama de PSD, temperado com umas pitadas de BE e uma redução de LIVRE.

Depois, o sistema proposto é apenas uma generalização do utilizado em Cascais, com 2º Voto Opcional, padecendo dos mesmos problemas que identifiquei acima. Isto é, tínhamos por um lado a problemática de transpôr as nossas preferências qualitativas para números, o que resultaria num processo francamente aleatório. Isto se não fosse dominado por uma lógica cínica/estratégica, o que nos leva ao segundo e  também já referido problema: essa maior liberdade não seria, a meu ver, utilizada em prol de obter resultados mais representativos, indo apenas tornas as eleições num jogo cícino em que o voto de cada cidadão teria mais de estratégia do que de sinceridade. Para clarificar, chamo jogo a qualquer estratégia de voto que não reflicta as preferências reais do eleitor, sendo exemplos de jogos tanto o voto útil como o inútil (nos diferentes sistemas considerados).

Enalteço a visão de que há outras formas de votar, de que a nossa não é necessariamente a melhor e a importância de ter este debate e fazer esta reflexão. As bases da Democracia, nomeadamente o sistema eleitoral, são por vezes olhados como algo intemporal e estanque, como se qualquer alteração às mesmas significasse o colapso da Democracia. Não é assim e, dada a sua importância, nunca devermos desistir de pensar no assunto e propôr novas soluções. No entanto, não concrdo com as alternativas propostas.

Uma das razões pela qual prefiro o nosso sistema actual é a de que o único jogo em que as pessoas têm a tentação de alinhar é o voto útil, cujas consequências são bem mais limitadas que as do voto inútil. Isto porque o voto útil tenta as pessoas a retirarem o seu voto dos partidos menos votados e a transferi-lo para os com mais percentagem de votos. Assim, a tendência é para sub-representar os partidos pequenos e sobre-representar os grandes o que, apesar de obviamente negativo, não é de todo tão perigoso (ou negativo do ponto de vista da representatividade dos resultados) como a sobre-representação dos partidos pequenos que derivaria do voto inútil. Na prática, o voto útil apenas tem poder para fazer o 2º lugar trocar com o 1º, enquanto que com o voto inútil teria a imprevisível capacidade de levar qualquer partido à vitória.

Por última, uma pequena nota em relação às legislativas que se avizinham. Os que seguem este blog já devem conhecer a minha posição em relação ao voto útil, acto que na minha opinião põe em causa a legitimidade das eleições e que deve, por isso, ser evitado. Mas, para os que colocam um certo pragmatismo à frente de tais considerações ideológicas deixo mais umas razões para fugir ao voto útil nas próximas sondagens. As sondagens não dão, até ao momento, espaço para maioria absoluta de qualquer candidato. Isto significa que, qualquer que seja o partido maioritário no Parlamento, terá que negociar com os restantes, nomeadamente os mais pequenos e vulneráveis à lógica do voto útil. Esta é portanto uma excelente oportunidade de todos aqueles que acreditam no potencial dos partidos mais pequenos os tirarem finalmente da (fácil e comfortável, há que dizê-lo) posição de eterna oposição e lhes atribuir algum poder concreto. Isto, aliado ao momento importante em que nos encontramos, são razões mais do que suficientes para deixar a utilizade de lado e votar em consciência.


Filipe Baptista de Morais