domingo, 28 de junho de 2015

Operação Justiça

Hoje decidi aproveitar a boleia do post anterior e voltar a escrever sobre Justiça. O texto de hoje será muito mais curto, já que se trata de criticar uma situação com uma gravidade francamente inferior, quase ao nível da mariquice.

Refiro-me aos nomes que as diversas polícias arranjam para nomear as suas operações, dando como exemplos Fazenda Branca, Apito Dourado, Marquês, Labirinto, Monte Branco, Portucale, Operação Furacão e Face Oculta. Durante muito tempo pensei que estes não fossem os nomes oficiais das operações, apenas designações inventadas pela Imprensa. Mas sucessivas declarações de fontes oficiais e alguma investigação acabaram por me convencer do contrário.

A meu ver todas delas deveriam ter nomes como OP_PJ_101745 ou OP_PSP_4002113. O meu desconforto prende-se com três razões muito simples. A primeira é a de que, ao arranjar nomes mediáticos para as suas operações, as polícias parecem de facto estar desejosas de mediatizar as suas operações, convidando os media a intrometerem-se nelas, quiçá violando o segredo de Justiça. Ao mesmo tempo, essa mediatização parece colocar uma investigação da PSP ao mesmo nível de uma investigação do Correio da Manhã. Os nomes importam, e podem tirar ridicularizar aquilo que é sério. Não é por acaso que os nossos e-mails profissionais tendem a ser do género jose_faria@somewhere.com e não lenhador_Rijo12345@somewhere.com.

A terceira e principal razão que me leva a criticar a escolha de nomenclaturas é a presunção de culpabilidade subjacente a alguns deles. Embora como é óbvio o nome dado à operação não interfira com a validade e idoneidade da mesma, nomes como Fazenda Branca, Marquês, Labirinto e Face Oculta suscitam no espectador imagens de redes de poder e conspiração ao nível de um romance de Dan Brown, promovendo ainda mais os julgamentos sumários em praça pública. Se estivermos a investigar se um cão é demasiado agressivo para poder andar à solta, chamar à operação Dentes Ferozes dificilmente vai ajudar a que pessoas não façam julgamentos precipitados.

Pode-ser dizer que isto é uma mariquice, e que a Justiça tem problemas maiores para resolver primeiro. Sem dúvida. Mas precisamente por ser um problema tão pequeno é que seria tão simples resolvê-lo.

sábado, 27 de junho de 2015

Caso Sócrates

É hoje em dia impossível viver em Portugal sem conhecer a identidade do prisioneiro nº44 de Évora. O caso Sócrates tem ganho um mediatismo considerável embora, na minha opinião, a gravidade dos acontecimentos o justifique e ainda mais. As últimas são as de que o MP (Ministério Público) propôs a alteração da medida de coacção para prisão domiciliária com pulseira electrónica. Após a recusa de Sócrates em utilizar a mesma, o (já famoso) juíz Carlos Alexandre decidiu então manter a prisão preventiva.

Como sempre, tudo isto se soube antes de anunciado oficialmente, através da Imprensa. O segredo de Justiça continua e a ser uma anedota, ignorado sempre que a sua violação possa render mais uns trocos (e/ou audiências). E, ainda que possa ser difícil detectar a origem das fugas internas na Justiça, não é difícil chegar ao fim de um artigo e verificar a assinatura que a acompanha. Alegarão os jornalistas que desconhecem estar a publicar material confidencial? Ainda que não se consiga provar que houve foul-play na obtenção de informações (eg: subornos,etc...) a mera publicação de material reconhecidamente ao abrigo  do segredo de justiça devia, na minha opinião, ser punível por lei.

Mas vamos ao que mais interessa. Não faço ideia se Sócrates é inocente ou culpado. Nem de quê, já que ainda não existe acusação formal (tanto quanto sei ser rico ainda não é crime em Portugal, embora para lá caminhemos). Sei, no entanto, que não vejo justiça na forma como o caso está a ser conduzido. O ex-primeiro ministro está privado da liberdade há mais de seis meses, sem acusação, e aparentemente assim vai ficar ainda bastante mais tempo. Isto já me parece inadmissível. Que tudo seja, aparentemente, a ser feito dentro do âmbito da lei é um conforto amargo. Não vejo Justiça nenhuma numa legislação que prenda para se investigar (sim, é um chavão, mas se não é disso que se trata então é do quê?). A proibição de dar entrevistas apenas veio acentuar ainda mais o meu desconforto com este caso. Vi três justificações para essa proibição: preservação segredo de justiça, possibilidade de perturbação do inquérito e perturbação do funcionamento normal do estabelecimento prisional (sendo esta definida pelo director do mesmo, e não por um juiz). A primeira não faz qualquer sentido, seja porque o segredo de justiça já há muito que deixou de ser preservado, seja porque este se destina a proteger o réu. Se o réu pretende comunicar publicamente informações que tenha sobre o caso, não vejo mal algum nisso. A segunda ainda menos percebo. Receiam que, em directo, Sócrates diga algo como "oh  mãe, vai à cave e abre o cofre com o código 26398298 e destrói todos os documentos que lá estejam dentro"? Certamente que teria formas melhores de o fazer. Ou receiam que apresente um chorrilho de críticas tão intenso que perturbe o trabalho dos juízes e magistrados? Nesse caso sugeriria que arranjassem outros, que lidassem melhor com a pressão. Quando à última, não vejo como é que uma entrevista perturbaria mais o funcionamento normal da prisão do que uma mera visita conjugal.

Mas, infelizmente, há mais, muito mais. Quem leu o acordão inicial justificando a prisão preventiva sabe tem muito mais de mesquinho que de idóneo e imparcial. Infelizmente não coonsegui agora re-descobrir o texto na íntegra, mas deixo algumas passagens que, embora pareçam transcrições de alguma conversa de tasca sobre o tema, são de facto tiradas do dito acordão:

  • "Díriamos, amizade sim, porque não? Mas tanto assim, também não! E amizade assim, por que razão? O arguido Carlos é um empresário, um homem de negócios. Até pode ser uma pessoa altruísta. Mas é empresário, vide de e para o dinheiro, para o reproduzir, multiplicar e ter lucros".
  • "Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vêm".
A primeira citação, referente à "amizade sem limites" de José Sócrates com o empresário Carlos Santos Silva e às avultadas transferências de dinheiro efectuadas por ambos é simplesmente surreal. Primeiro, pela perspectiva de uma criança de 4 anos sobre aquilo que significa ser empresário. Que eu saiba, o Shor Doutor Juíz também vive de dinheiro (bom, da comida que compra com ele) e, apesar de talvez gostar do seu trabalho, certamente que gosta que este dê lucros e multiplique as suas poupanças. Esta patética tentativa de impôr considerações morais a um tipo de carreira profissional seria somente infantil, não fosse o caso de vir de alguém com importantes poderes de decisão no ramo da Justiça; nesse caso torna-se extremamente perigosa. E, perdoem-me, mas não creio que compita ao Tribunal da Relação definir qual o nível adequado de amizade entre dois cidadãos, nem o montante de transferências. E o cheiro a esturro pode ser suficiente para uma condenação em praça pública depois da hora de almoço, mas nunca pode ser de argumento a juízes representantes da Justiça. A segunda citação, assim como muitas outras semelhantes que, infelizmente, não consigo reproduzir de memória, ilustra bem dois aspectos importantes dos signatários do acordão. O primeiro é o seu desprezo pelo princípio da presunção da inocência, pilar dos sistemas de justiça modernos (bom, os Ocidentais pelo menos). O segundo é a aparente leveza com que encaram toda esta situação. Claramente privar um cidadão da sua Liberdade por uns meses não é algo que os perturbe por aí além. Não digo que juízes com este perfil não sejam indicados para julgar um caso desta importância; acho que não são adequados para julgar seja que caso for.

A actual (tentativa de) redução da medida de coação também não parece fazer muito sentido. A prisão preventiva tinha sido justificada pela interferência na investigação (após o inicialmente considerado perigo de fuga ter sido afastado como ridículo; o que não deixa de ser interessante pois fica a ideia que primeiro manda-se prender e depois se pensa na justificação). Agora, recuperaram o perigo de fuga no pedido de pulseira electrónica. Porquê? Na minha opinião, por uma razão muito simples: não cabe na cabeça de ninguém que uma pulseira electrónica previna Sócrates (ou outra pessoa qualquer) de interferir com qualquer investigação. A sua finalidade é, obviamente, a de limitar o perigo de fuga. Mas então porquê invocar um já afastado argumento para, seis meses depois, reduzir a medida de coacção? Creio que a única respostas possível é a de que o MP está a tentar reduzir a borrada que fez e reduzir a contestação social e na imprensa. Ver a Justiça reduzida a manobras políticas dignas de um bom acessor de imagem é tão desapontante como revoltante. Já agora, para quem prefere textos assinados com nomes conhecidos, deixo aqui uma referência a um artigo de Daniel Oliveira que vai de encontro aos meus sentimentos sobre o assunto. 

Deixo também uma segunda referência, desta vez à opinião de Ricardo Costa. Diz ele que esta decisão (de manter a prisão preventiva) apenas tem relevância pessoal, e não ao nível da avaliação que fazemos do nosso sistema de Justiça. Não podia discordar mais. Que alguém encare com naturalidade que se prive um cidadão da liberdade por um ano inteiro (o mesmo texto sugere que a acusação será formalizada em Novembro) sem acusação formal (quanto mais um julgamento) parece-me a mim um sinal de que o nosso sentido de Justiça está tão podre quanto as Instituições que a deveriam assegurar.

Uma nota, também, para o vergonhoso comportamento dos media em todo este processo (não muito diferente, reconheça-se, daquele que têm em qualquer outra situação). Durante semanas fui brindado com um registo diário das visitas (pessoais, diga-se) a José Sócrates na prisão, e na forma como os seus amigos o tinham achado, com comentários como "está com bom ar" ou está animado" (e desenganem-se aqueles que acham que falo de tablóides, consultem o registo do tão respeitado Expresso por exemplo).  Para além dos recorrentes e já referidos ataques ao segredo de Justiça, sucederam-se também as notícias irrelevantes sobre os luxos da vida de Sócrates, com direito a visita guiada à sua casa em Paris, assim como quaisquer outros factos que pudessem parecer criticáveis (digo parecer porque eu, pessoalmente, não condeno o luxo) e/ou minar a sua credibilidade. Poderiam tratar-se de notícias completamente ao lado da investigação, mas não é certamente o caso caricato d' Observador onde sob a rúbrica Caso Sócrates chegam a ter uma notícia com o título "Livro de Sócrates vendeu menos de 17 mil exemplares". Confessso que isto me causa alguma apreensão, já que o meu blog também não tem assim tantos seguidores. Estarei também em risco de ser preso?

Pior ainda foi a boquinha velada enviada por Passos Coelho, num ato que configura um misto de cobardia, desrespeito do princípio da presunção da inocência e parvoíce (que raio tinha uma situação a ver com a outra?).

Não posso deixar de referir também, o caso dos comentários efectuados por magistrados e outros agentes da Justiça no facebook. Não porque tenham valor criminal (cada um pode dizer os disparates que lhe apetecer no facebook ou num blog, como eu tantas vezes tenho vindo a provar) mas porque revelam sentimentos mesquinhos, vingativos e muito pouca idoneidade e seriedade daqueles que têm a Justiça a seu cargo. Oxalá o texto da legislação e constituição Portuguesas esteja suficientemente bem redigido para nos proteger de tais mentalidades.

Um reparo final para clarificar algumas coisas. Não acredito que Sócrates seja um santo, e reconheço até que haja indícios de que possa estar envolvido em casos de corrupção. Mas indícios não são provas, e um tribunal não é a tasca da esquina. Bem sei que não foi condenado com base nesses indícios, mas a realidade é que já ficou preso (ao prisioneiro serve de pouco o preventivamente) mais de seis meses, e tudo indica que irá ficar um ano. Não me parecem prazos razoáveis. Que acontece se, em 2016, for julgado e considerado não culpado? O MP apresenta as suas sinceras desculpas? Paga-lhe uma indemnização pelo ano de vida em cativeiro? Certamente que muitos argumentarão "ah mas é assim que está escrito na lei, e passa-se isso todos os dias com prisioneiros Zé Ningúem e agora só se fala no assunto porque ele é famoso". Tremo quando penso que isso é provavelmente verdade. Quantos inocentes terão ficado meses na prisão porque ainda se estava a investigar o caso? Convém recordar que mesmo o prevaricador, até considerado culpado em julgamento, é inocente aos olhos da lei. Urge alterar a legislação que permite que isto aconteça.


Filipe Baptista de Morais