sábado, 11 de abril de 2015

Greve (sim, outra vez)

O tema não é novo a este blog, mas nem por isso deixa de ser actual. As greves na função pública sucedem-se, sendo de momento a greve conjunta (agora separada) da Metro e Carris aquela que mais tinta faz correr nos jornais, assim como mais queixumes suscita nas população. Começarei por fazer um curto comentário a essa greve em particular, partindo depois para considerações mais gerais em torno do direito à greve (*).

Essa greve é, na minha opinião, uma enorme falta de respeito pelos restantes trabalhadores, assim como um claro abuso do direito à greve. Por muitas semelhanças que possam ter, a Carris e a Metro são empresas diferentes, com trabalhadores diferentes e, portanto, lutas diferentes. Esta junção de greves mais não é do que uma junção de poder sindical com o intuito de maximizar o impacto das mesmas sobre o utente. Pior, mais uma vez os verdadeiros argumentos/razões permanecem escondidos debaixo de uma tão fofinha quanto politicamente correcta (e falsa, já agora) defesa do serviço e do utente (*2). Deixem as lutas do utente para o utente, e respectivos meios. E por amor de deus, deixem de fingir que nos estão a representar quando nos lixam a vida.

Atenção que não em pronunciei sobre a existiência de motivos (não abertamente revelados) que justifiquem as duas greves (separadas). Apenas critico a sua junção e a utilização recorrent do serviço e dos utentes (que são, na verdade, o único prejudicado com estas greves) como justificação das mesmas.

 Quem já leu aqui textos sobre a Greve pode ter ficado com a impressão de que defendo a abolição da mesma. De facto, embora reconheça que a abolição do dito direito possa parecer bastante extremista, acho que deveria ser pensada, e que não se deveria apelidar de fascista quem sequer sugere tal exercício de raciocínio. Passo a explicar porquê.

Qualquer discurso inflamado sobre a defesa do direito à greve começa por dizer que este é um direito fundamental e inalienável (soam tão bem juntos, estes dois adjectivos) dos trabalhadores. Mas quem vêm notícias sabe que as greves ocorrem quase exclusivamente no sector público ou quase-público (designo assim empresas tão grande que se assemelham a um Estado na forma da gestão, estando muitas vezes associadas a, por exemplo, contratações colectivas). Os restantes trabalhadores não fazem greve. E, no entanto, sobrevivem. Isto só por si deveria chegar para concluir que o direito à greve tem muito pouco quer de fundamental quer de inalienável.

Mas não fazem greve porquê? A resposta mais simples é: por medo de represálias. Numa PME, fazer greve seja porque motivo for não vai obviamente cair bem junto das chefias. Assim, ainda que a legislação proíba que o trabalhador seja alvo de represálias por ter exercido o direito à greve, este vai sentir um (muito justificado) medo de ver a sua progressão na carreira (ou mesmo a manutenção do seu posto de trabalho) ameaçada, ainda que esse ataque seja justificado com outros motivos. Dito desta forma parece que estes trabalhadores estão de facto sujeitos a uma enorme exploração e que, ao contrário do raciocínio que deu origem a estes parágrafos, se deveria trabalhar no sentido de tornar a greve mais acessível a eles. No entanto e curiosamente, isto vai contra a linha de argumentação por detrás da maior parte das greves: a de que o Estado é o pior patrão de todos e que os trabalhadores públicos não têm as condições ou os direitos que os seus congéneres que não fazem greves.

Um capitalista de gema talvez argumentasse que um trabalhador descontente de uma PME iria à procura de outro trabalho. Diria até que não faz sentido querer manter uma relação empregador-trabalhador em que um não está contente com o outro. Sendo que cada um tem necessidades e valências diferentes, converger-se-ia assim para um melhor equilíbrio onde esse trabalhadorr encontraria um emprego onde se sentisse melhor e, por outro lado, o seu anterior empregador arranjaria outro trabalhador que gostasse das condições oferecidas. Esta é, obviamente, uma visão extremamente simplista do mercado de trabalho, em particular numa altura em que a taxa de desemprego apresenta níveis altos. Pode ajudar-nos, no entanto, a encarar a relação trabalhador-empregador como uma simbiose e não como um permanente conflito (a verdade, como sempre, está algures no meio). E chama-nos também a atenção para o seguinte: é difícil reinvindicar melhores condições de trabalho (salários, horários, etc...) quando há uma enorme fila de pessoas desesperadas por obter as mesmas condições que nós rejeitamos.

É também preciso analisar a questão da greve do ponto de vista das expectativas do trabalhador. Um pouco de teoria de jogos, se quiserem. No privado, tipicamente, uma greve faria a empresa perder dinheiro. No entanto, tal dificilmente faria os patrões abrir os cordões à bolsa. Isto porque, por um lado, eles não quereriam abrir um perigoso precedente, dando a entender que cederiam sempre que os trabalhadores fizessem barulho suficiente nas suas reinvindicações. Por outro porque, estando a balança de poder desiquilibrada, é mais fácil à empresa substituir o trabalhador do que o contrário.

A situação é muito diferente no público. Primeiro porque as regras do jogo são bem distintas com, por exemplo, uma muito maior rigidez de quadros e distanciamente trabalhador-empregador. Há também todo um libertarianismo que apenas sentimos ao gastar o dinheiro dos outros. Isto é, um político oportunista e demagogo (ever seen one?) facilmente cederá a reinvindicações para tirar manifestantes descontentes das ruas, já que estes lhe estão a tirar votos e o dinheiro para financiar essas mesmas reinvindicações não lhe vem do bolso. Isto costuma ser particularmente notório na proximidade de eleições. Mas há ainda outra questão; quiçá mais importante. Mesmo tendo apenas o interesse nacional em conta, pode ser proveitoso (para o país) aceder a reinvindicações, ainda que não se concorde com elas. Isto porque o impacto de algumas destas greves (em particular do sector dos transportes) na economia pode ser maior que o de ceder; isto é especialmente verdade se pensarmos que as greves podem ter um carácter periódico até que as suas reinvindicações sejam ouvidas.

O raciocínio acima conduz a um dos maiores problemas das greves na função pública, e que já abordei neste espaço: o de serem realizadas (e terem efeitos) pelos motivos errados. Assim, o objectivo de uma greve no sector público não é o de alertar o estado (nem o público em geral) para os problemas dos trabalhadores, mas sim gerar descontentamento geral e não direccionado. Uma greve não produz efeitos pela validade das suas reinvindicações (muitas vezes nem sabemos quais são...) mas sim porque as pessoas ficam insatisfeitas com o cheiro a lixo não recolhido nas ruas ou com a impossibilidade de estarem com a família no Natal. Isto gera, obviamente, descontentamento; curiosamente a maior parte do mesmo é direccionado aos grevistas. Contudo, a parte que sobra para a classe política é muitas vezes suficiente para a forçar a agir, servindo assim o interesse dos (agora odiados) grevistas. O único prejudicado nestas situações é obviamente o cidadão comum, já que o Estado, não sendo uma empresa privada, não sofre com a queda dos lucros (por vezes até poupa dinheiro, como no caso dos transportes). Um excelente exemplo de como o objectivo principal das greves é causar transtorno ao utente (de forma a gerar descontentamento no mesmo) e não ao empregador é o de, nas greves dos médicos, estes serem aconselhados (e incentivados) pelos seus sindicatos a não avisar os pacientes de que as suas consultas não serão realizadas, naquilo que considero ser uma falta de consideração (e respeito) absolutamente atroz. As greves no sector público são, assim, uma forma particularmente cínica e perversa de protesto/reinvindicação.

Há ainda uma questão que considero importante. A lógica da greve está, a meu ver, enraizada em factores que mudaram drasticamente nos últimos anos. A greve era utilizada como uma forma pressão financieira mas também, e talvez essencialmente, de mostrar às pessoas as condições de trabalho de trabalhadores que estavam escondidos dos olhos do público em geral (a labutar numa mina ou fábrica perdida algures), conseguindo assim solidariedade social e ganhando apoiantes à sua causa. Ora a pressão financeira, junto do Estado, se funciona é pelos motivos errados (como vimos acima). Já a greve enquanto meio de representatividade está totalmente ultrapassada, na era das televisões e da Internet. Isto torna-se óbvio quando temos greves sucessivas em que os motivos nem são revelados, ou são falsos/inválidos (como a qualidade do serviço e os direitos do utente de que já falei acima). Penso que hoje em dia a greve é vista como uma consequência directa do nosso descontantamento (ie: estou descontente, logo faço greve), sendo por isso um fim em si mesmo e não um meio. Isto levou à sua descaracterização e degradação.

Uma última nota a respeito das pressões, sendo que aqui pressão denomina tudo aquilo que influencia a decisão do trabalhador em aderir (ou não) à greve e que seja distinto da sua concordância com os motivos da mesma. Fala-se muitas vezes nas pressões exercidas sobre os trabalhadores para que não façam greve. Estas podem vir sob a forma de ameaças (expressas ou intuídas) mas também simples pressão financeira, pelo simples facto de os trabalhadores não receberem o salário correspondente aos dias de paragem (embora seja comum os sindicatos re-embolsarem os aderentes). Mas das pressões a favor da greve raramente se fala nos meios de comunicação social (ainda que estas sejam frequente tema de conversa de tasca/café), em mais um exemplo da submissão do jornalismo (e da política) ao politicamente correcto. Estas assumem algumas expressões óbvias, como sejam dormir mais umas horinhas de manhã (nas greves parciais) e ter mais dias de descanso/férias, particularmente quando a greve calha a uma sexta ou segunda. Mas também surgem sob formas que, à partida, não nos ocorreriam, como sejam a intimidação. Vejamos o caso das greves dos professores à vigilância das PACC, por exemplo, em que os colegas não aderentes eram recebidos por turbas (que como sabemos tendem a ser inflamadas) com slogans como Não aceites ser carrasco dos teus colegas. Esta pressão psicológica tende por vezes a adquirir contornos de ameaça física, como no caso recente da greve na Patinter. Ainda que não se chegue a este extremo, e que se perca um ordenado de um dia, convenhamos que é muito mais conveniente fazer um fim-de-semana prolongado do que ir para o trabalhando, passando pelo caminho por uma turba acusatória, tendo nas semanas seguintes de conviver com os mesmos colegas que a compõem.

Com todo este texto não pretendia demonstrar a inutilidade da greve (não o é), nem defender o fim do direito à mesma. Pretendia sim, e espero tê-lo conseguido, demonstrar que este não é um direito tão básico quanto possa parecer (há alternativas para atingir o mesmo fim) e que não se deve cortar pela raíz qualquer debate em torno da necessidade da existência desse direito, sob o pretexto de que tal seria fascista ou anti-progresso. Vou agora sugerir algumas medidas que, a meu ver, serviriam para resolver alguns dos problemas que identifiquei anteriormente:

  • As datas das greves não seriam escolhidas pelos trabalhadores/sindicatos. Isto terminaria com a clássica greve de sexta/segunda-feira, com as greves marcadas para alturas festivas de forma a maximizar o impacto no cidadão comum (não é essa ideia por detrás da greve) e, mais importante, com as greves cirúrgicas como é o caso da greve à vigília das PACC dos professores. Esta última é fundamental, pois a greve tem de ser sempre um instrumento reinvindicativo/negocial, e nunca uma forma nebulosa de exerção do poder executivo (legislativo até) por parte de quem não o possui;
  • Os motivos da greve deveriam ter de ser aprovados por algum tribunal arbitral, e adequadamente transmitidos ao público através da RTP e de portais oficiais do Estado. Atenção que validar os motivos não é o mesmo que concordar com eles. Assim, reinvindicar melhores salários seria, por exemplo, sempre um motivo válido para a realização de uma greve. Isto acabaria, no entanto, com as greves disfarçadas (pelo utente, pelo serviço, etc...) ao mesmo tempo que ajudaria a causa das greves legítimas;
  • Greves com o mesmo motivo teriam que ter um espaçamento temporal mínimo (de vários meses). Isto para evitar que esta seja usada como forma de chantagem (ie: Estamos de greve todas as 5ªs até que cedam às nossas reinvindicações);
  • Deveria ser obrigatória a presença dos trabalhadores no local de trabalho (ou outro a designar). Isto evitaria que os trabalhadores se sentissem incitados a aderir à greve simplesmente para usufruir de dias extra de férias. A presença dos trabalhadores poderia ser aproveitada para, por exemplo, ações de manifestação ou reuniões negociais.
Resumindo: considero que a greve é, em muitos aspectos, uma forma de luta ultrapassada e perversa, quer pelo acesso que os trabalhadores têm a ela (está disponível essencialmente para o setor público) quer pelos mecanismos pelos quais consegue resultados. A ser considerada um direito básico dos trabalhadores (como até agora) sugiro algumas alterações que, a meu ver, rresolveriam alguns dos seus problemas e devolveriam alguma credibilidade à Greve.



Filipe Baptista de Morais

(*) Este texto foi escrito antes do adiamento da greve por parte da Metro; não estranhem portanto que me refira a ela como greve conjunta.

(*2) Talvez ainda mais interessante, a Carris já marcou nova greve para dia 22. Desta vez o sindicato anunciou que "A greve será para os trabalhadores poderem participar nesta jornada de luta", sendo a referida jornalata de luta uma manifestação de protesto contra a subconcessão. Por um lado, como já referi anteriormente noutro texto, essa luta (a existir) não é dos trabalhadores mas dos cidadãos em geral, e portanto tal nunca poderia servir de motivo à greve. Por outro não deixa de ser interessante a marcação de uma greve com o intuito expresso de participar numa manifestação. Não poderiam marchar a um sábado? Enfim.