quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Avaliação da Greve

No passado dia 19 de Dezembro teve lugar mais uma PACC (Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades), que visa avaliar e partir daí seleccionar candidatos a docentes. Antes de ir àquilo que me interessa aqui comentar vou deixar alguns comentários rápidos:

  • Não considero aceitável que se faça(m) greve(s) nos dias das provas e, portanto, às mesmas indirectamente: a greve é um meio de protesto, não de sabotagem e/ou decisão; se querem governar os dirigentes têm de reunir assinaturas, criar um partido e ganhar legitimidade nas urnas, tal como qualquer outro cidadão;
  • Acho que temos de facto necessidade de mecanismos de avaliação de professoresm assim como de (quase) todas as outras funções públicas. No entanto, não deixo de considerar demasiado simplista e aleatória uma selecção baseada num único exame;
  • Em relação aos resultados da prova não partilho o choque e indignação que muitos parecem sentir relativamente aos errors ortográficos. Sim, o Ministro não mentiu quando disse que cerca de 75% dos textos têm erros ortográficos. Mas também é verdade que mais de 80% deles têm menos de cinco. A pontuação ainda me preocupa menos; durante anos levei correcções de pontuação com as quais não concordava, e continuo hoje a discordar (esta frase não passaria no escrutínio btw). Pode ser só um mix próprio de ignorância e arrogância,  ou pode ser que a correcção da expressão escrita seja mais subjectiva do que se quer fazer passar (não resisto a mencionar Saramago).
  • Deparei-me com uma notícia do jornal I chamava a atenção para três perguntas para as quais a percentagem de respostas certas nãoo chegou aos 30% (para cada uma). Estes números parecem-me bastante chocantes, já que as perguntas, embora possam parecer abordar Matemática ou futebol, apenas dizem respeito a lógica elementar.
  • Acho extremamente preocupante que, segundo fontes oficiais (ver primeiro link), tenha havido 18% de respostas em branco ao item de resposta extensa orientada (vulgo composição) e de 77% de respostas que não cumpriram o limite mínimo de palavraas pedidas.
Agora sim, vamos ao assunto em mente. A greve à vigília da PACC há muito que estava anunciada, e já opinei sobre a sua legitimidade no primeiro ponto. Quero aqui focar-me noutro aspecto. Teoricamente, cada docente decidiu em consciência se participa ou não na greve, com base em considerações ideológicas. Mas olhem bem para os panfletos a publicitar a mesma. Imaginem o que é estarem a deslocar-se para o local de trabalho e receber, de um colega, um papel com slogans como "Não aceites ser carrasco dos teus colegas". Talvez por estarmos a falar de professores, o assunto fez-me lembrar as praxes. Em teoria, todos são livres de não participar. Na prática, a pressão social  para que tal aconteça é brutal.

Estes reforços adicionais, captados por este meio, tornam mais difícil avaliar a aderência a uma dada greve, e consequentemente avaliar a sintonia dentro da classe referente ao assunto que a motivou. Numa altura em que estas já estão descridibilizadas pela crença popular (e verdadeira) de que muitos fazem greve não por concordância ideológica, mas por conveniência (mais um dia de férias cai sempre bem) torna-se cada vez mais difícil levar os números a sério.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Um por todos...

Quem viu as notícias (ante)ontem sabe que, entre a vitória do Sporting e a derrota do Porto, o Syriza venceu as eleições na Grécia. Há muito de interessante a comentar neste tema, mas concentremo-nos num par de apontamentos.

É engraçado reparar no quão impacientes são os jornalistas. Há quase um mês (desde 29 de Dezembro de 2014, se não estou em erro) que se sabe que a Grécia iria ter eleições antecipadas. De lá até cá têm sido equacionados e analisados todos os cenários possíveis. Dado que uma vitória do Syriza sempre se afigurou iminente, esse cenário em particular teve especial atenção. É portanto engraçado ver todo o acompanhamento que o evento teve ao longo do dia, repetindo tudo o que já tinha sido dito e concluído como se de novidade se tratasse. Durante a contagem dos votos, as projeções eram actualizadas ao segundo (tanta impaciência!). E, claro, no final os noticiários e programas de comentários centraram-se todos nas consequências da vitória do Syriza, como se fosse surpresa e tivessem falado de outra coisa no último mês. Mas nada disto é novo, e sucede constantemente com os clássicos do futebol e outros acontecimentos de elevada importância.

Mas muito mais relevante que o abordado no parágrafo anterior foi a importância que se deu ao facto de o Syriza ter falhado a maioria absoluta por uns meros dois deputados. Reparem, isto significa que, num Universo de cerca de trezentos deputados, bastaria convencerem dois das virtudes de qualquer medida para conseguir a sua aprovação. Parece simples. Mas a verdade é que não o é, e daí dois deputados fazerem toda a diferença. Os partidos tendem a rejeitar toda e qualquer proposta que não venha do seu seio, nem que seja para proporem o mesmo mais tarde. Isto faz todo o sentido do ponto de vista racional (e não empático): oporem-se a toda e qualquer medida do governo em funções, caso esta não tenha uma maioria absoluta. equivale a sabotar totalmente a sua capacidade governativa. E um país não desgovernado não passa bem, e isso deixa as pessoas descontentes. Ora pessoas descontentes são, como se sabe, um tesouro para qualquer partido na oposição e levam quase certamente à desejada mudança de cadeiras.

Este comportamento só é possível na prática devido a algo que não consigo perceber como se considera aceitável: a disciplina de voto. A disciplina de voto leva a que os deputados não votem de acordo com as suas crenças ou princípios (em prol, é preciso dizê-lo, da sua própria carreira dentro do partido) o que deturpa todo o processo democrático. Aliás, existindo disciplina de voto, nem faz sentido haver tantoss deputados: basta um por partido com a proporção de votos correspondente. Ora aí está uma boa forma de esticar o orçamento.

Acabar com a disciplina de voto pode parecer complicado, já que, tanto quanto sei, esta não está oficialmente contemplada na lei (ie: as consequências de incumprimento da mesma não são a nível da justiça, mas interno do partido). No entanto poderia ser extremamente simples: bastaria para tal que o voto dos deputados fosse secreto (assim como o nosso o é, quando nos deslocamos às urnas). Quem já viu votações na Assembleia da República talvez tenha reparado que o/a presidente da mesma refere, um por um, os nomes dos deputados indicando qual o sentido do seu voto. Pior, para cada deputado refere também o partido a que se refere. A proposta em discussão em si também é apresentada como vindo do partido que a propôs. Isto, a meu ver, não faz sentido. Gera um sentimento de clubismo que é tão desnecssário como anti-produtivo. A partir do momento em que são eleitos para a Assembleia, o afiliamento dos deputados devia deixar de ser relevante (e referido). Do mesmo modo, não vejo porque razão as propostas não possam ser apresentadas de forma anónima.

Muitos dos problemas acima referidos acontecem devido ao facto de as sessões da Assembleia serem observadas (um fenómeno quântico, se o quiserem ver dessa forma). Isto faz com que os deputados, em vez de debatarem uns com os outros, falem para as câmaras. É sabido que isso leva invariavelmente a pseudo-debates dicotómicos  e populistas. Nenhuma proposta de um partido da lado oposto da bancada é recebida com Olha, isso até não é mal pensado! ou mesmo com Hum... isso faz algum sentido mas.... Não, o que temos invariavelmente são não faz sentido nenhum, tentativa de destruir o estado social, plano monstruoso, etc... Acredito serialmente que os dialógos seriam diferentes se feitos em privado. A começar pelo facto de existirem. E continuo a sonhar com o dia em que Passos Coelho e António Costa (ou equivalentes da época) decidam ir beber uma imperial para uma esplanada e discutir políticas, sem câmaras nem transeuntes.

Deixo ainda aqui outra ideia, que espero fará muitas professoras da primária sorrir e acenar. Ao invés de sentar os deputados por bancadas partidárias, sentem-nos aleatoriamente, com uma rotação periódica. Sejam amigos.


Filipe Baptista de Morais

domingo, 4 de janeiro de 2015

Estado, liberdade e religião (e não estado da liberdade religiosa)

Alguns meses atrás o Tribunal Constitucional deu razão a uma procuradora adventista num processo contra o Ministério Público. Em causa estava o direito de não trabalhar aos Sábados, reinvindicado pela procuradora em nome da liberdade religiosa (link).

Na minha opinião isto está errado a vários níveis. Em primeiro lugar, a questão da liberdade religiosa. Não percebo a necessidade de este termo aparecer seja onde for na nossa constituição, ou no texto de qualquer lei. Todos temos o direito a pensar e a acreditar no que nos apetecer; este direito precede e transcede o direito à escolha religiosa. Não há, portanto, qualquer necessidade de particularizar a liberdade religiosa, face a qualquer outra forma de pensamento, crença ou expressão. Na verdade, as palavrras religião, religioso e outros derivados não deveriam aparecer de todo nas leis civis. Nunca deixa de me espantar a naturalidade com que as pessoas encaram as intromissões da religião no domínio civil. A mais óbvia expressão disto será, talvez, o facto de partidos políticos com expressão governativa ainda terem alusões religiosas no nome, como é o caso da CDU (em Português União Democrata-Cristã) de Angela Merkel.

Em segundo lugar, e ignorando o primeiro ponto, não vejo porque deveria a solução (para o eventual problema) passar por não trabalhar ao Sábado. O emprego em questão não lhe era imposto pelo Estado. Implicava, no entanto, uma série de condições a que, convém dizê-lo, todos os seus colegas cristãos e ateus (teremos menos direitos por isso?) estão sujeitos. Assim sendo a decisão do TC parece ser de caráter discriminatório e esquecer por completo o princípio da igualdade. Estamos num país livre, de acordo. Se o TC acha que trabalhar ao Sábado viola de alguma forma as liberdades ou direitos dos seus cidadãos então que o proíba de igual forma para todos.

Há ainda um terceiro ponto que gostaria de frisar, porque creio ser importante. O TC parece ter decidido na base de a religião preceder ou superar em importância as leis civis e os princípios que as regem, nomedamente o da igualdade. Isto é extremamente perigoso, se nos lembrarmos das atrocidades que se cometeram (e se continuam a cometer) em nome da religião. Mas é também idiota. Se eu criar um código de conduta próprio, será uma religião? Porque não? Afinal, o que define a religião? Eu, e outros a quem convença das virtudes do meu código, podemos acreditar verdadeira e fielmente n'Ele, Até podemos usar uma letra maiúscula quando nos referimos ao Dito (sim, já comecei a fazê-lo). Ou será que para ser uma religião certificada (há uma lista destas no código civil, já agora?) tem que ter um número mínimo de seguidores? A religião nunca pode servir de prextexto para moldar a lei já que se reflecte simplesmente numa vontade pessoal. Permitir que isso aconteça seria o mesmo que colocar um * em todos os artigos dizendo esta lei não se aplica quando entra em contradição com as crenças e/ou vontades do cidadão. Aparentemente este asterisco já existe em Portugal, mas apenas quando as crenças e/ou vontades do cidadão se enquadram numa religião reconhecida pelo tribunal.

Ignorar a lei em nome da liberdade de religião não é de todo um fenómeno Português. Olhemos, por exemplo, para a Alemanha que tantos Portugueses encaram como um paraíso e arauto de progresso e desenvolvimento (apesar de habitado por "nazis xenófobos", um paradoxo que sempre me intrigou).
Em 2002, o Tribunal Constitucional Alemão permitiu o abate de animais segundo ritos muçulmanos, mais uma vez em nome da liberdade religiosa (link). Mas, como nos outros casos, a proibição nada tem a ver com religião, isto é, a lei não diz não se podem matar aniimais segundo os ritos muçulmanos, mas sim não se podem matar animais por sangria. Agora diz algo que soa muito mais perigoso: não se podem matar animais de forma cruel excepto se por motivos religiosos. Pior que as palavras religião/religiosos numa legislação civil é quando as mesmas vêem acompanhados do termo exceção.

Já em 2007, uma juíza do Tribunal Administrativo de Frankfurt interditou um pedido de divórcio (relacionado com queixas de violência domésticas) justificando que, no âmbito cultural de origem do casal (Marrocos pelo que percebi), o marido tem o direito de disciplinar a mulher e que ela deveria ter pensado nisso antes de casar com ele (link). Mais grave do que isso, segundo a mesma notícia a única consequência aparente para a dita juíza terá sido o afastamento do caso por suspeita de falta de imparcialidade. A meu ver, isto justificava não só o afastamento permanente de cargos judiciais (ou pelo menos até conseguir compreender as diferenças entre o código civil e o Corão) e acusações criminais por grave abuso de poder e negligência do dever.

Há poucos dias atrás, li n'Observador que em Berlim ou Bremen os problemas de violência familiar, em famílias muçulmanas, são resolvidos, à luz da Sharia, por "Juízes de Paz" que são em simultâneo Imãs (link). Nem vou comentar esta última.

Para que fique bem claro, não pretendo com este texto atacar nenhuma religião em particular, nem a religião em geral. Condeno, isso sim, a submissão com que os Estados de Direito se vergam ainda às mesmas. A liberdade religiosa (que, repito mais uma vez, não necessitava de ser consagrada isoladamente em Constituição algumas) não pode servir de pretexto para contornar a lei. Todos admitimos limites à mesma, já que não permitimos que, por exemplo, se mate em nome da religião. Mas escapa-nos ainda o essencial: o de que a religião é um motivo tão bom (leia-se: mau) para violar a lei como outro qualquer, e que não deve portanto merecer tratamento especial. Diga-mo-lo claramente e sem rodeios. Todas as religiões são aceitáveis perante a lei. São-lhe, aliás, indiferentes (ou pelo menos deveriam sê-lo). Já alguns comportamentos não são aceitáveis perante a lei. E não interessa se se trata de rituais religiosos ou de outra coisa qualquer. A lei tem de ser a mesma para todos, crentes ou não.


Filipe Baptista de Morais

P.S: no primeiro link que forneci (para o Público) é ainda referido um segundo caso de uma senhora que recorrera à Justiça depois de ter sido despedida por se ausentar do trabalho para culto. Este caso pode gerar mais simpatias, já que a mesma alega ter um acordo prévio com os patrões de que não trabalharia naquelas ocasiões por motivos religiosos. A ser verdade tem toda a razão, claro. Mas, mais uma vez, a religião não é para aqui chamada. Um acordo contratual é para cumprir, tenham as suas cláusulas sido motivadas por motivos religiosos ou por pálpebras pesadas. Assim, o que estava em causa não era (de todo) a liberdade religiosa mas sim o cumprimento do Código de Trabalho.