domingo, 15 de fevereiro de 2009

Viva la Vida

Todos nós desejamos ser felizes. E julgo que a maior parte de nós o é apesar de, claro, todos termos os nossos problemas. Afinal de contas, nós não somos perfeitos, porque haveriam as nossas vidas de o ser? E se fossem, isso faria de nós felizes? Deixemos (pelo menos de momento) esta questão pendente e concentremo-nos primeiro nos conceitos mais imediatos. O que é a felicidade? Para uns, a felicidade é a possibilidade de fazermos aquilo que nos dá gozo. Para outros (almas mais românticas talvez) é estarmos com aqueles de quem gostamos. E há ainda quem defenda que a felicidade advém simplesmente de a vida nos correr bem, do sucesso, a todos níveis. Talvez seja uma mistura de todos estas coisas. Ou talvez não seja nenhuma delas. Uma observação que acho importante é de que a felicidade não se relaciona linearmente com aquilo que a vida nos dá. Todos sabemos de pessoas que, apesar de terem vidas invejáveis tanto a nível pessoal como profissional, não se sentem realmente felizes. E, por outro lado, há pessoas que encontram a felicidade sob as condições mais adversas. Parece assim que a felicidade surge do contraste entre as nossas expectativas da vida e aquilo que obtemos. Num certo sentido, nós definimos quais as condições para sermos felizes. O poeta Vicente de Carvalho em tempos escreveu "A felicidade está onde a pomos/mas nunca a pomos onde nós estamos". Embora a segunda proposição se me afigure exagerada e depressiva, a frase em si reflecte bem as ideias apresentadas anteriormente.


Na sua notável obra, Admirável Mundo Novo (Brave New World) Aldous Huxley descreve-nos, numa ficção científica sobermemente concebida, uma sociedade "perfeita". Nela as pessoas são criadas em laboratório e condicionadas (desde embriões) para a sua vida futura. Isto significa que, "à nascença", o local onde vão viver, o trabalho que irão realizar, em suma, toda a vida de um indivíduo se encontra determinada. E, devido ao condicionamento, essa vida é tudo aquilo que o indivíduo deseja. Podemos dizer que tal indivíduo não pode ser feliz pois não é livre? Talvez. Mas, se definirmos liberdade como a possibilidade de fazermos aquilo que queremos, não é verdade que ele faz tudo aquilo que quer? E devemos ter pena do escravo cujo trabalho é tudo aquilo que ele deseja? Claro que todas essas vontades não são intrínsecamente suas, foram-lhe condicionadas, mas, em termos práticos, poderá o resultado ser o mesmo? Tal indivíduo relembra-me certo poema de Fernando Pessoa:


"Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim(...)"

Assim como o gato, encontra-se liberto de preconceitos, ou pelo menos não os reconhece enquanto tal, pois estes afiguram-se-lhe como dogmas fundamentais e inquestionáveis. É um servo de leis, não da Natureza mas da Ciência, mas não se revolta pois é isso que deseja ser. Os seus instintos foram "programados" para corresponder ao que é pretendido dele, e não se interroga sobre a sua condição ou sobre o que mais poderia ser. Tem consciência, mas esta não o atormenta pois não tem aspirações. E como poderia ter? Tudo aquilo que é é tudo aquilo que aspiraria ser. Dito isto, como criticar uma sociedade onde todos são felizes? Podemos classificar essa felicidade como falsa, mas tal não altera o facto de que os habitantes dessa sociedade se sentem felizes; poderá ser isso tudo aquilo que realmente importa? Talvez a questão não seja a autenticidade dessa felicidade, mas sim a profundidade da mesma. Talvez esses indivíduos apenas experienciem uma felicidade superficial, não podendo aprofundá-la devido à inexistência (nessa sociedade) de conceitos como a arte, a amizade, o amor. Na obra, surge um habitante de uma sociedade "à moda antiga" que, após visitar o admirável mundo novo, tem a seguinte conversa com o director -corresponde à autoridade máxima da sociedade- Mustafá Mond:


" -Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero a bondade, quero o pecado.
-Em suma -disse Mustafá Mond-, você reclama o direito de ser infeliz.
-Pois bem, seja assim! -respondeu o Selvagem em tom de desafio- Reclamo o direito de ser infeliz."
Um diálogo notável, e que dá que pensar. Creio que, posto na mesma situação, replicaria as palavras do Selvagem. Afinal, de que serve a felicidade sem a possibilidade de sermos infelizes?


Filipe Morais


Agradecimentos a José Frederico Ferreira, por me emprestar a obra que, apesar de marcante, não me dei ao trabalho de comprar.





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