quarta-feira, 2 de julho de 2014

Perseguindo os perseguidores, sem cepticismo

Há poucos dias deparei-me com uma notícia do público que estava a gerar uma considerável reacção por parte da população. Como sempre, há mais um do que aspecto a merecer referência.

Primeiro, a leviandade com que se extrapola e se tiram conclusões far-fetched de estudos. Não é de todo uma novidade que o espírito crítico e/ou céptico está em vias de extinção()*, mas nunca me deixa de espantar a fraqueza desse espírito, mesmo quando os dados estão à vista. A notícia cita os autores, que alegam que o estudo prova (acredito que o termo escolhido tenha sido obra do jornalista, mas nunca se sabe) que “os estados emocionais podem ser transferidos para outras pessoas através do contágio emocional”. Ora, segundo os dados publicados na mesma notícia, houve "um decréscimo de 0,1% no número de palavras positivas, no grupo dos utilizadores que viram reduzidas as publicações com o mesmo tipo de vocábulos no seu feed, e uma diminuição de 0,07% no total de palavras negativas entre os que foram menos expostos a esse tipo de conteúdos." Percentagens bastante baixinhas diria. Mas talvez sejam significantes dado o # de palavras escritas? Ora pois bem, felizmente a notícia elucida-nos em relação a esse aspecto também. Procurando os números e fazendo uns cálculos simples chegamos à conclusão que os participantes no estudo disseram, em média, 177 palavras. Sendo que 3.6% eram negativas e 1.6% positivas, os participantes disseram em média 6.372 palavras negativas e 2.832 palavras positivas. Agora sem grande rigor estatístico (não é de todo necessário para exprimir este ponto de vista) o tal decréscimo de 0.1% significa que os participante sujeitos a feeds negativos disseram, em média, por volta de menos três milésimas de palavra. No outro caso, estamos a falar de menos de cinco milésimas de palavra. Ora, eu não sei exactamente o que é uma milésima de palavra, mas não me parece algo muito relevante.

Para além dos pequeninos números, há a meu ver outra grande falha nas conslusões desse estudo, que foi o ignorarem completamente o princípio da navalha de Occam.  Ao invés de assumir que os estados emocionais estavam a ser transferidos (*2), não seria mais plausível assumir que as pessoas utilizam com mais frequência as palavras que estão costumadas a ver e ouvir? Afinal, a heurística da disponibilidade é conhecida e está bem estudada e documentada, sendo para além disso relativamente intuitiva e óbvia.

Conclusões e sua robustez à parte, não deixa de ser interessante a indignação exposta por tantos utentes do facebook, ao verem os seus feeds manipulados por algum algoritmo. Esquecemo-nos que na realidade eles já são manipulados, simplesmente por outro algoritmo. A notícia refere isso mesmo perto do fim, acrescentando que "Não é a rede tal como a veríamos sem filtros". Apesar de verdade, penso que a afirmação pode gerar certas dúvidas. É que a "rede sem filtros" é um conceito puramente teórico/filosófico, sem qualquer significado na realidade. Não existe. Não poderia existir. Isso significaria que estaríamos a ver todos os feeds jamais publicados, por nenhuma ordem em particular. E nenhuma ordem exclui até a popular ordem aleatória. Os investigadores limitaram-se, simplesmente, a altear o algoritmo que escolhe aquilo que queremos ver. Mais, enquanto que o algoritmo usual tem o intuito óbvio e admitido de manipular (mostra-nos aquilo que queremos ver, de modo a que gostemos de lá ir), este prendia-se apenas com fins científicos e estatísticos. Não sejamos paranóicos. Forçar que tais inofensivos estudos careçam de avios e autorização prévio é retirar-lhes qualquer valor que eles alguma vez poderiam vir a ter. Nunca os (pseudo) perseguidores foram tão perseguidos.


Filipe Baptista de Morais

*Já agora aproveito para sugerir que se inforem sobre a Comunidade Céptica Portuguesa, assisti o ano passado a umas paletras muitos interessantes organizadas por eles.

(*2) Devo agora talvez salientar que acredito piamente que os estados emocionais são contagiantes; apenas critico a suposta prova dessa tese.

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