domingo, 4 de janeiro de 2015

Estado, liberdade e religião (e não estado da liberdade religiosa)

Alguns meses atrás o Tribunal Constitucional deu razão a uma procuradora adventista num processo contra o Ministério Público. Em causa estava o direito de não trabalhar aos Sábados, reinvindicado pela procuradora em nome da liberdade religiosa (link).

Na minha opinião isto está errado a vários níveis. Em primeiro lugar, a questão da liberdade religiosa. Não percebo a necessidade de este termo aparecer seja onde for na nossa constituição, ou no texto de qualquer lei. Todos temos o direito a pensar e a acreditar no que nos apetecer; este direito precede e transcede o direito à escolha religiosa. Não há, portanto, qualquer necessidade de particularizar a liberdade religiosa, face a qualquer outra forma de pensamento, crença ou expressão. Na verdade, as palavrras religião, religioso e outros derivados não deveriam aparecer de todo nas leis civis. Nunca deixa de me espantar a naturalidade com que as pessoas encaram as intromissões da religião no domínio civil. A mais óbvia expressão disto será, talvez, o facto de partidos políticos com expressão governativa ainda terem alusões religiosas no nome, como é o caso da CDU (em Português União Democrata-Cristã) de Angela Merkel.

Em segundo lugar, e ignorando o primeiro ponto, não vejo porque deveria a solução (para o eventual problema) passar por não trabalhar ao Sábado. O emprego em questão não lhe era imposto pelo Estado. Implicava, no entanto, uma série de condições a que, convém dizê-lo, todos os seus colegas cristãos e ateus (teremos menos direitos por isso?) estão sujeitos. Assim sendo a decisão do TC parece ser de caráter discriminatório e esquecer por completo o princípio da igualdade. Estamos num país livre, de acordo. Se o TC acha que trabalhar ao Sábado viola de alguma forma as liberdades ou direitos dos seus cidadãos então que o proíba de igual forma para todos.

Há ainda um terceiro ponto que gostaria de frisar, porque creio ser importante. O TC parece ter decidido na base de a religião preceder ou superar em importância as leis civis e os princípios que as regem, nomedamente o da igualdade. Isto é extremamente perigoso, se nos lembrarmos das atrocidades que se cometeram (e se continuam a cometer) em nome da religião. Mas é também idiota. Se eu criar um código de conduta próprio, será uma religião? Porque não? Afinal, o que define a religião? Eu, e outros a quem convença das virtudes do meu código, podemos acreditar verdadeira e fielmente n'Ele, Até podemos usar uma letra maiúscula quando nos referimos ao Dito (sim, já comecei a fazê-lo). Ou será que para ser uma religião certificada (há uma lista destas no código civil, já agora?) tem que ter um número mínimo de seguidores? A religião nunca pode servir de prextexto para moldar a lei já que se reflecte simplesmente numa vontade pessoal. Permitir que isso aconteça seria o mesmo que colocar um * em todos os artigos dizendo esta lei não se aplica quando entra em contradição com as crenças e/ou vontades do cidadão. Aparentemente este asterisco já existe em Portugal, mas apenas quando as crenças e/ou vontades do cidadão se enquadram numa religião reconhecida pelo tribunal.

Ignorar a lei em nome da liberdade de religião não é de todo um fenómeno Português. Olhemos, por exemplo, para a Alemanha que tantos Portugueses encaram como um paraíso e arauto de progresso e desenvolvimento (apesar de habitado por "nazis xenófobos", um paradoxo que sempre me intrigou).
Em 2002, o Tribunal Constitucional Alemão permitiu o abate de animais segundo ritos muçulmanos, mais uma vez em nome da liberdade religiosa (link). Mas, como nos outros casos, a proibição nada tem a ver com religião, isto é, a lei não diz não se podem matar aniimais segundo os ritos muçulmanos, mas sim não se podem matar animais por sangria. Agora diz algo que soa muito mais perigoso: não se podem matar animais de forma cruel excepto se por motivos religiosos. Pior que as palavras religião/religiosos numa legislação civil é quando as mesmas vêem acompanhados do termo exceção.

Já em 2007, uma juíza do Tribunal Administrativo de Frankfurt interditou um pedido de divórcio (relacionado com queixas de violência domésticas) justificando que, no âmbito cultural de origem do casal (Marrocos pelo que percebi), o marido tem o direito de disciplinar a mulher e que ela deveria ter pensado nisso antes de casar com ele (link). Mais grave do que isso, segundo a mesma notícia a única consequência aparente para a dita juíza terá sido o afastamento do caso por suspeita de falta de imparcialidade. A meu ver, isto justificava não só o afastamento permanente de cargos judiciais (ou pelo menos até conseguir compreender as diferenças entre o código civil e o Corão) e acusações criminais por grave abuso de poder e negligência do dever.

Há poucos dias atrás, li n'Observador que em Berlim ou Bremen os problemas de violência familiar, em famílias muçulmanas, são resolvidos, à luz da Sharia, por "Juízes de Paz" que são em simultâneo Imãs (link). Nem vou comentar esta última.

Para que fique bem claro, não pretendo com este texto atacar nenhuma religião em particular, nem a religião em geral. Condeno, isso sim, a submissão com que os Estados de Direito se vergam ainda às mesmas. A liberdade religiosa (que, repito mais uma vez, não necessitava de ser consagrada isoladamente em Constituição algumas) não pode servir de pretexto para contornar a lei. Todos admitimos limites à mesma, já que não permitimos que, por exemplo, se mate em nome da religião. Mas escapa-nos ainda o essencial: o de que a religião é um motivo tão bom (leia-se: mau) para violar a lei como outro qualquer, e que não deve portanto merecer tratamento especial. Diga-mo-lo claramente e sem rodeios. Todas as religiões são aceitáveis perante a lei. São-lhe, aliás, indiferentes (ou pelo menos deveriam sê-lo). Já alguns comportamentos não são aceitáveis perante a lei. E não interessa se se trata de rituais religiosos ou de outra coisa qualquer. A lei tem de ser a mesma para todos, crentes ou não.


Filipe Baptista de Morais

P.S: no primeiro link que forneci (para o Público) é ainda referido um segundo caso de uma senhora que recorrera à Justiça depois de ter sido despedida por se ausentar do trabalho para culto. Este caso pode gerar mais simpatias, já que a mesma alega ter um acordo prévio com os patrões de que não trabalharia naquelas ocasiões por motivos religiosos. A ser verdade tem toda a razão, claro. Mas, mais uma vez, a religião não é para aqui chamada. Um acordo contratual é para cumprir, tenham as suas cláusulas sido motivadas por motivos religiosos ou por pálpebras pesadas. Assim, o que estava em causa não era (de todo) a liberdade religiosa mas sim o cumprimento do Código de Trabalho.

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