domingo, 22 de março de 2015

Desigualdades de (e diferenças entre) Géneros

O recente dia Internacional da Mulher voltou a trazer o tema da Igualdade de Direitos para cima da mesa, e deu azo a todo o tipo de notícias e intervenções. Como é um tema que, na minha ótica, é sistematicamente mal avaliado e abordado (e também como já tinha abordado o assunto noutro post que pecou por falta de clareza) decidi escrever sobre o assunto. Para explicar melhor as minhas opiniões fui compilando notícias ou artigos que serviam de exemplo a algum ponto que me pareceu importante.

Comecemos por estabelecer terreno comum e consensual. Deve existir igualdade de direitos entre homens e mulheres. Penso que muito poucos cidadãos do chamado Mundo Ocidental discordariam desta afirmação, e eu certamente que não o faria. Taambém creio ser consensual que, a nível mundial, essa igualdade está longe de existir. Em muitos países a mulher ainda nem é reconhecida como cidadã plena perdendo, entre outros, o direito ao voto. O debate e a luta pelos direitos da mulher é portanto actual e necessário, nesta perspectiva global. É a nível local que a questão parece estar mais ultrapassada.

Uma questão que considero importante realçar é a distinção entre dois tipos de desigualdade.

O primeiro é a desigualdade de direitos (daqui por diante quando falar de desigualdade apenas é disto que estarei a falar) e caracteriza-se por ter um carácter premeditado (ie: é imposto expressamente e propositadamente e não é consequência da conjugação de diversos factores, nomeadamente o acaso) e por ter enquadramento legal (ie: é reconhecido, aceite e perpretado por um Estado ou semelhante). São exemplos óbvios e claros desta desigualdade os países onde a mulher não tem direito ao voto, ou a conduzir.

O segundo tipo, a que vou chamar diferença e não desigualdade, é uma constatação empírica (factual ou não) que não é nem premeditada nem estipulada legalmente, apenas o é e é-o por causas eventualmente desconhecidas e/ou incompreendidas. Um exemplo disto são os salários médios mais baixos auferidos pelas mulheres: são um facto mas não são impostos por nenhuma política ou lei, nem são resultado da acção deliberada de nenhum agente económico.

A diferença entre estes dois conceitos é extremamente importante para esta discussão. Isto porque enquanto as desigualdades são sempre erradas e podem e devem ser resolvidos legislativamente, o mesmo não pode ser dito das diferenças. Estas não são, em si mesmas, negativas nem positivas. Mais, não sendo instauradas explicitamente, também não podem ser removidas dessa forma (eg: assim como nenhuma norma diz que as mulheres recebem menos que os homens não se pode fazer uma a dizer que receberão o mesmo). As diferenças são, quanto muito, manifestações de desigualdades.

São, no entanto, misturadas com frequência, como quando Hillary Clinton (e tantos antes e depois dela) referiu o rácio de CEOs mulher como uma violação dos direitos da mulher (ou do Homem já que, como ela refere e bem, estes são iguais para ambos os géneros). Referiu também que as mulheres são as mais afectadas nas questões de saúde e alimentação, mas aqui confesso que não faço a mais pálida ideia do que está a falar. Tanto quanto sei a esperança média de vida das mulheres é superior à dos homens em todos os países desenvolvidos, sendo uma das razões apontadas para tal precisamente a prática de melhores hábitos alimentares. E porque raio, já agora, é que toda esta lógica simplística (de ver desigualdades em estatísticas diferentes de 50%) não considera a menor esperança de vida do homem como uma desigualdade e violação dos direitos do homem?

Acho importante realçar, neste ponto, que a distinção entre diferenças e desigualdades não é feita pela intensidade ou gravidade das mesmas, mas sim e apenas pela sua essência. Dou um exemplo de cada para clarificar. Se lerem o regulamento relativo à utilização de transportes colectivos (afixado em todos os autocarros da carris) encontrarão o artigo 187º, cuja alínea b) diz que os funcionários da Carris são obrigados a prestar aos passageiros todo o auxílio de que careçam, tendo especial atenção para com as senhoras, mutilados, velhos e crianças. Esta discriminação injustificada (e, neste caso, positiva) da mulher face ao homem é uma desigualdades. É, no entanto, suficientemente irrelevante para todos a ignorarmos com um encolher de ombros (eu, pelo menos, faço-o). Já os rácios de género nos Conselhos de Administração das empresas do PSI20, questão suficientemente importante para arreliar tanta gente, são uma diferença. O facto de a distinção desigualdade-diferença não se prender com questão de grau/intensidade é também importante porque a torna absoluta e não relativa (embora posteriores considerações morais não o sejam, obviamente).

Voltando aos Direitos, estes também não estão isentos de polémica. Isto porque, embora seja consensual que estes devem ser garantidos, aquilo que se qualifica ou não como um direito já não o é. Penso até que é nesta questão, e nalgum extremar de posições, que o feminismo perde muito apoio e solidariedade. Veja-se, por exemplo, a invasão da barbearia Fígaro, que não permite a entrada a mulheres. É discriminação claro, no sentido literal do termo, tal como o é eu não me poder inscrever no ginásio Viva Fit, espreitar os balneários femininos de  ginástica acrobática ou dar entrada num lar de terceira idade. Não é discriminação no sentido negativo da palavra, nem uma demonstração de desigualdade.

Por vezes aponta-se como negativa e imperceptível o desconforto que alguns homens sentem ao ouvir o termo feminista. O feminismo não é mais do que a defesa dos direitos da mulher, dizem, e não pressupõe nenhuma agressividade ou antipatia face ao género masculino. Tudo bem, penso que isso faria de mim um feminista também. Nesse sentido sou também machista (ah pera, isso tem um significado diferente...) Mas infelizmente para a causa o feminismo não é uma organização com critérios de entrada bem definidos. Assim, muitas das posições tomadas em nome do mesmo são vistas por muitos homens (e algumas mulheres, espero) como francamente ridículas. Exemplos disso são o incidente acima referido na barbearia Fígaro, o movimento Free the Nipple (independentemente de sermos a favor ou não da legalização do topless discuti-lo em termos de igualdade de géneros é ridículo) e a reacção de Ellen DeGeneres (um dos símbolos do feminismo moderno e ocidental) ao lançamento de uma caneta para mulheres pela marca BIC. Permitam-me um pequeno comentário a esta última. Penso que até seria fácil e razoável argumentar fisiologicamente a favor da lógica de haver canetas para mulheres e homens. Mas ainda considerando que isso é irrelevante (de facto somos todos capazes de usar as mesmas canetas) não há nada de insultuoso ou inigualitário em direccionar os produtos a um público alvo mais específico com meras alterações estilísticas, ou mesmo puro marketing. Este excesso de sensibilidade no detector de discriminação/desigualdade não traz muita simpatia à causa.

Isto por si só levaria muitas pessoas a franzir o sobrolho ao ouvir o termo feminisa, mas o pior é que, não aderindo a toda e qualquer causa estapafúrdia que alguém se lembre de enfiar debaixo dessa (enorme) bandeira, um homem é imediatamente etiquetado de machista e retrógrado (para as mulheres reservam as etiquetas de submissa ou vítima de lavagem cerebral).

Para além do excessivamente amplo leque de causas, fica ainda muitas vezes implícita a ideia de uma qualquer conspiração masculina para subjugar e estupidificar a mulher, obviamente completamente descabida (ou se há deixaram-me de fora, e talvez me deva sentir insultado). Veja-se, por exemplo, a reacção de Cate Blanchett ao interesse mediático no seu vestido. É fácil explicar essa discriminação: no dia seguinte aos Óscares milhões de mulheres por todo o mundo (e muito poucos homens, ironicamente) consultavam a internet para ver quais os vestidos usados e eventuais indicações sobre tendências para a nova estação (é assim que se diz?). Quando um jornalista pára um casal na rua e pergunta ao homem (e não à mulher) qual o seu prognóstico para o Sporting-Benfica isso não é desigualdade, é o reconhecimento de uma diferença. O movimento associado ao episódio em Hollywood, Ask Her More, é também idiótico por querer dar ao meio cinematográfico uma profundidade que ele não tem. Se quiser ouvir falar de política internacional oiço um discurso do Dalai Lama, e não uns comentários de Cate Blanchett (ou Jude Law) na passadeira vermelha. Faz lembrar os concursos de misses.

Por vezes a culpabilização do homem não é tão subtil quanto isso. Leia-se por exemplo o texto de Maria João Marques, onde o ódio é quase palpável*. Ou as palavras de Emma Watson após receber ameaças (eventual ou alegadamente devido ao seu discurso feminista): Assim que defendi o direito das mulheres fui imediatamente ameaçada. (...) É muito comum as mulheres serem ameaçadas. (...) Pensei que era por isso que tinha de fazer algo para pôr fim a essas atitudes. Aparentemente Emma e o irmão também consideraram que as tais ameaças são prova da necessidade e actualidade da causa. Mas qualquer pessoa que leia jornais ou frequente fóruns online sabe que exprimir publicamente uma opinião (polémica ou não, e sobre qualquer tópico) pode levar a um chorrilho de ameaças cibernáuticas. Uma celebridade está obviamente muito mais exposta a este tipo de ataques cobardes. Mas esta questão não levanta qualquer tipo de dúvida ou debate relativamente a direitos, muito menos específicos da mulher: há legislação referente a ameaças e calúnias em vigor, quer sejam direccionadas à activista feminina quer ao sócio do Benfica.

Os tópicos mais recorrentes em relação à discriminação das mulheres são as desigualdades salariais e de progressão na carreira (rácio de CEOs, altos dirigentes políticos, etc...) como referidos nos seguintes artigos (1, 2 e 3). Por vezes mistura-se também a violência doméstica e outros tipos de violência contra as mulheres (mutilação genital etc...), como aqui. Não gosto desta mistura, e explicarei abaixo porquê. Não deixo, no entanto, de reconhecer a prevalência da violência contra as mulheres e do consequente debate em torno do tema: simplesmente não considero que seja uma questão de igualdade (chamem-lhe semântica se quiserem) pelo que também não posso deixar de criticar que coloquem essa temática sob esse estandarte (bom exemplo disso é esta notícia). Também criticável na mesma o aparente impacto que um papel representado numa série telenovelesca teve na escolha de uma emissária da UN Women. Sempre têm alguma razão os que duvidam da capacidade humana de distinguir a realidade da ficção televisiva.

Vou explicar-me melhor então. Não acho que a violência contra as mulheres deva ser chamada para a discussão da igualdade de géneros nem dos direitos da mulher porque ela já é um crime (estamos a falar de países desenvolvidos apenas, agora) e exactamente nos mesmos termos que quando exercida sobre um homem. Quando um terrorista faz um atentado e mata N pessoas não se debate sobre os direitos dos inocentes, nem se afirma que esse assassinato é uma prova da falta de direitos dos inocentes (em particular, face aos terroristas). O que não nos impede de discutir a ameaça terrorista e formas de nos defendermos dela. Na mesma lógica, quando um homem bate numa mulher isso não faz com que ela tenha menos direitos, só faz com que ele seja um criminoso. Falar de desigualdade aqui apenas faria sentido se houvesse uma permissividade legal relativamente à violência quando pratica por homens e/ou exercida sobre mulheres. A minha perceção pessoal é a de que acontece exactamente o oposto: a sociedade é muito mais permissiva relativamente à violência doméstica quando esta é praticada pela mulher (vejam este estudo por exemplo).

Voltemos então agora à questão do trabalho. Na minha opinião, esta é uma das áreas marcadas por diferenças e não desigualdades. Diferenças essas que acredito serem explicadas por factores económicos e sociais (eg: preferências pessoais) e não por nenhuma discriminação injustificada. Em relação aos salários em particular eu nunca vi nenhum estudo que mostrasse que as mulheres recebem menos para a mesma função (se alguém me indicar um terei todo o gosto em ler e adicionar uma errata relativamente a esta parte; sem ironia). Vi muitos artigos citarem estudos e a proclamarem essa conclusão, e até alguns estudos a concluírem isso sem, na minha opinião, apresentarem dados que a justifiquem. Sinceramente não acredito que tal estudo exista pois penso tratar-se de um mito. Até porque como se explicaria essa diferença? Será que nós homens temos reuniões secretas (quiçá na Fígaro) para inventar engenhosas fórmulas de discriminação sexual? Ou será subconsciente, e de tal forma poderosa que nem o contabilista repara que a sua colega de departamente recebe menos do que ele? Pessoalmente não conheço nenhuma empresa que, para a mesma função, pague mais a um homem que a uma mulher. Conheço muitas que, em média, pagam mais aos trabalhadores masculinos do que às trabalhadoras. E conheço muitas que pagam acima da média e que empregam sobretudo homens. Estas três afirmações não são redundantes nem contraditórias entre si. E todas ajudam a explicar as diferenças salariais constatadas estatísticamente, sem recorrer a planos maquiavélicos.

Como já abordei este tema uma vez e constatei que a minha opinião sobre o mesmo não ficou muito claro vou adicionar mais uns remates. Dizer que as decisões de mercado se baseiam em, precisamente, lógica de mercado não significa que não se possa ou não se deva fazer nada para as alterar. É por exemplo óbvio, na minha opinião, o impacto que a (potencial) gravidez tem na carreira da mulher. Este pode ser diminuído (embora em termos de progressão de carreira não acredito que se possa eliminar completamente, pelo menos sem abdicar do capitalismo enquanto modelo económico) de várias formas, como sejam a nivelação dos períodos de licença de maternidade/paternidade e o combate aos papéis de género (abaixo voltaremos a isto) que ditam que, por exemplo, seja a mulher a faltar ao trabalho em caso de doença dos filhos. Pretendo apenas desmistificar a ideia de que as mulheres são discriminadas enquanto tal. Decisões baseadas em perfis e personalidades (eg: postura mais agressiva e dominadora por parte dos homens, muitas vezes associada a posições de liderança) serão mais difíceis de influenciar, embora estes também possam (até certo ponto) ser manipulados.

Referi acima os papéis de género, e vou aproveitar a deixa para voltar ao início deste já longo texto e à distinção diferença/desigualdade. Defendi que as diferenças não são intrínsecamente negativas, nem se eliminam explicitamente. Mas isso não significa que não possamos actuar sobre elas, nem que não o devamos fazer. O fulcral, na minha ótica, é perceber o porquê da diferença e, quando justificável, actuar sobre essa causa. O mal (quando existe) reside assim não na diferença mas na sua causa, e é aí que tem de ser atacado, Podemos considerar, por exemplo, ainda prevalece a imagem da mulher dona-de-casa, com consequente desproporção na distribuição das tarefas domésticas. Penso que quase todos concordamos que esta imagem é negativa, e portanto faz sentido tentar alterar os papéis de género nesse sentido. Saliento que, na minha opinião, o problema reside na imagem em si, e nas mensagens subliminares presentes na sociedade que a fazem propagar-se no tempo enquanto status quo, e não na desproporção da distribuição das tarefas domésticas. Esta só é importante por nos dar a motivação necessário para atacar o problema da imagem; se esta fosse inconsequente, teríamos coisas mais importantes em que pensar.

Um amigo enviou-me este link para documentação de referência  (falamos de orientações governamentais) que pretende explicar como essa mudança de paradigmaa base pode (e vai) ser induzida na geração seguinte (por exemplo evitando que, nos manuais escolares, a grande maioria das imagens ilustrativas de tarefas domésticas representem mulheres) e que, embora vergonhosamente ainda não tenha lido, acredito ter conteúdos extremamente interessantes.

Mas o assunto torna-se rapidamente mais pantanoso. Os papéis de género e as expectativas da sociedade explicam muita coisa, mas não são os únicos responsáveis pelas diferenças entre homens e mulheres. Parte dela é genética (se tiverem tempo aconselho a visualização deste programa Norueguês). Mas ainda que toda ela fosse orquestrada pela sociedade, não podemos ser ingénuos ao ponto de acreditar que existe um ponto neutro de influência da sociedade. Especular portanto quais deveriam ser as escolhas e comportamentos de homens e mulheres nesse ponto neutro e adaptar a sociedade até o atingirmos é inútil, para além de ter contornos de Brave New World. É por isso que considero perigosas, e negativas, medidas baseadas em objectivos (eg: aumentar número de mulheres CEOs, aumentar rácio de mulheres em IT) em oposição a medidas directamente direccionadas às causas, sem preocupação com os seus efeitos. Pegando no exemplo do IT, não há nada de intrínsecamente negativo em haver poucas mulheres na área (e porque não combater a desigualdade verificada nos rácios de género entre cantoneiros do lixo?), nem nestas preferirem outras áreas. Não percebo, portanto, a necessidade de implementar medidas para alterar essa realidade, nem afirmações como as de Vera Jourova (Comissária Europeia para a Justiça, Consumo e Igualdade de Género): é preciso que desde cedo as raparigas sejam incentivadas a prosseguir estudos nas áreas tecnológicas. Dizer que o rácio actual está errado significa que se quer atingir outro. Mas qual? 50%? Ou um qualquer rácio (chamemos-lhe basal) que algum estudo xpto dirá tratar-se da taxa natural, quando subtraída a influência da sociedade? E porque razão é a sub-representação das mulheres no IT e noutras áreas tão problemática, se sub-representações semelhantes de homens noutras área não o são?

Mantendo o exemplo das mulheres no IT, poderia contestar-se o estereótipo de género em torno da área e, por aí, justificar a sua manipulação deliberada. Mas fará isso sentido, visto não existir nada de negativa com os rapazes gostarem mais de PCs? Não estaremos a tornar-nos perigosamente manipuladores ao exigir que 50% dos técnicos de IT representados nos manuais escolares sejam mulheres, quando sabemos muito bem que tal não corresponde à realidade? Tanto na história como na ficção distópica, a distorção e manipulação da realidade é um dos sinais de um estado totalitarista.

Talvez alguns frequentadores assíduos deste espaço se recordem e estranhem o meu louvor à iniciativa/empresa Goldie Blocks, que pretendia (para além de fazer dinheiro) precisamente tornar as engenharias mais apelativas às mulheres através de brinquedos alegóricos adaptados para o sexo feminino (espero que a Ellen não leia isto). Acontece que isso é uma iniciativa privada, que obedece a uma preferência pessoal (a fundadora gostava de ter mais amigas engenheiras, ou algo do género) e não a alguma normalização de estatísticas. Eu, enquanto trabalhor da área e ex-aluno de uma faculdade de engenharia, também gostaria de ter e ter tido mais colegas mulheres. Daí que aplauda essa iniciativa, assim como a mais recente Miss Possible. É, na minha opinião, necessário algo muito mais forte que gostava que houvesse mais mulheres em IT e homens em enfermagem, nomeadamente fundamentadas considerações morais, para justificar a intervenção do Estado neste processo de re-programação. Porque não tenhamos ilusões: não é possível não interferir no desenvolvimento das crianças e indivíduos, apenas podemos alterar o sentido dessa mesma influência. E, excepto nos já referidos casos de força maior, prefiro uma máquina inocente (no sentido de não pensada, sem criador ou propósito) derivada da nossa cultura e tradição aos caprichos de um Governo (ainda por cima nestas temáticas muitas vezes submissos aos caprichos de quem grita mais alto ou com mais histeria) que acha que as raparigas estão sub-representadas aqui ou acolá.

Tudo isto não passaria de curiosidades e notícias irritantes, não fosse estar a gerar-se em Portugal (e na Europa) um perigoso sentimento de necessidade de acção, ainda que mal justificada ou direccionada. A questão das quotas (nos assentos parlamentares, nos conselhos de administração, etc...) é, a meu ver, o cúmulo da ironia: em nome da não discriminação de género no trabalho (leia-se: ao contratar, não olhar ao sexo do candidato) obrigam a que tenhamos essa mesma característica em conta. E tudo, claro, baseado na dita taxa basal (neste caso creio que 50%) de representatividade. Pior que isso, na minha opinião, são declarações como as de Ana Gomes: É altura de Portugal ter uma mulher Presidente da República. (Já tinha ouvido dizer o mesmo relativamente à presidência da Comissão Europeia, antes da eleição de Juncker). Ora quanto mais importante um cargo menos se deveria olhar para o género (per se) ao ponderar candidatos; e obviamente que não há tempos para eleger mulheres e outros para eleger homens. Também recentemente uma notícia citava ou um dos membros do novo conselho de administração da RTP ou um representante do Governo (infelizmente não guardei o link, e a minha memória não me permite precisar) a congratular-se pela inclusão de uma mulher no novo conselho de administração da RTP e a referir que isso deveria ser encarado como um exemplo. Ora ter mulheres um conselho de administração não é prova de avanço civilizacional. Chamar a atenção para o facto e usá-lo como se fosse é, ironicamente, prova do exacto oposto (além de potencialmente desprestigiante e desmotivador para a senhora em causa). Já a intervenção de António Costa quero acreditar que não passou de uma (mesmo muito má) piada sobre um assunto serio.

Por último, deixo ao leitor aquilo que considero ser uma pérola do excesso de zelo na procura de igualdade de direitos: o Guia para uma linguagem promotora da igualdade entre mulheres e homens na Administração Pública (aprovado em 2009), e pretendendo corrigir a terminologia utilizada na AP de forma a evitar ou prevenir a discriminação. Assim, saiba o leitor que a fim de promover a igualdade deve dizer pai e mãe em vez de pais, trabalhadores e trabalhadoras (os políticos já adotaram esta e outras há muito, sendo também comum a inversão para trabalhadoras e trabalhadores) em vez de simplesmente trabalhadores, a pessoa que requer em vez de requerente (esta é mesmo muito boa...), a gerência em vez de o gerente (nem têm o mesmo significado, como o próprio guia reconhece...), Família Silva em vez de Sr./a Silva, entre outras.

Resumidamente, considero que existe uma certa histeria totalmente desnecessária (se quiserem, desactualizada ou deslocada) em torno das desigualdades de género, que advém essencialmente de o feminismo (enquanto movimento não organizado) colocar sob a sua bandeira várias temáticas que não estão directamente relacionadas com o tema, para além de confundir diferenças com desigualdades. A colonista d'Observador escreveu há pouco tempo Saudades do tempo em que éramos livres e não o sabíamos, onde aborda ao de leve alguma das temáticas (foi onde encontrei também o Guia acima referido). Este texto poder-se-ia chamar O tempo em que éramos iguais e não o sabíamos.


Filipe Baptista de Morais

*Na realidade o texto menciona um estudo que me tinha parecido interessante, visto alegadamente indicar um enviesamento de genéro na correcção de provas de Matemática. Infelizmente não consegui aceder ao estudo original (bom, sem pagar pelo menos) para atestar a relevância do efeito e a robustez da metodologia. (Entretanto deparei-me com alguém que o fez, e não achou grande coisa. Aparentemente nem os autores acharam as diferenças significativas).

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