domingo, 23 de novembro de 2014

Carreiras Abortadas

Foi hoje notícia em vários jornais que, em concursos de selecção para unidades de Serviço Nacional de Saúde (SNS), foi perguntado às médicas candidatas se estavam a pensar engravidar. O caso está a gerar uma compreensível onda de contestação contra aquilo que é uma clara forma de discriminação.

Para ter pretensões de resolver um problema há que, primeiro, compreendê-lo. E é importante que se perceba que quem faz estas perguntas não tem nada contra bébés, nem contra as mulheres em geral. Do ponto de vista da empresa, ficar temporariamente sem uma funcionária representa uma importante perda de produtividade. Claro que há subsídios estatais para compensar este efeito, mas serão suficientes para compensar os prejuízos?

É de notar, também, que o caso reportado se refere ao sector público, tipicamente menos preocupado com produtividades e com uma mentalidade menos capitalista (já que se trata de dinheiro alheio). Então porquê a preocupação com os planos familiares das médicas? Porque as chefias, a ter consciência social (e acredito que a tenham) se preocupam com a capacidade de prestar serviços da sua equipa. Este problema é bem real, já que como é bem sabido o mercado de trabalho Português e tradicionalmente pouco flexível, nomeadamente no que toca à rotatividade dos trabalhadores (trabalho temporário e despedimentos). Conheço inclusivamente pessoas (nem todas homens) com cargos de chefia no sector que têm essa preocupação de não ter demasiadas mulheres na equipa, devido ao elevado número de baixas prolongadas na equipa (agravadas quando co-existem no tempo) a que as gravidezes por vezes levam.

Os pontos acima pendem-se, essencialmente, com as dificuldades de substituição que advém de um mercado de trabalho rígido. Há, contudo, outras dificuldades a acrescer. Em trabalhos especializados é comum ser necessário um tempo de formação até que o trabalhador se torne produtivo (mais uma vez isto não se refere unicamente à perspectiva de fazer lucro, mas também de prestar um serviço). Estas situações, nada raras, tornam extremamente indesejável substituir temporariamente trabalhadores, mesmo quando tal é possível.

Todo este raciocínio não tem o intuito de desculpabilizar a discriminação. Simplesmente acredito que, para atacar o problema de uma forma relevante, é necessário entender e ter em conta aquilo que está verdadeiramente em causa, e não falar cegamente de uma discriminação em relação às mulheres imposta por uma sociedade machista.

Goste-se ou não, a possibilidade de gravidez causa verdadeiros entraves à assumção de papeis mais importantes nas empresas em que trabalham (e.g: cargos de chefia). Passando por qualquer empresa encontram-se trabalhadores fulcrais, cuja ausência empata todo o tipo de serviços/projectos e leva a prejuízos colossais. É portanto natural que exista uma certa relutância em atribuir esses papéis a mulheres com possibilidades de engravidar. Contudo, ignora-se sistematicamente esta realidade, culpando a discriminação na contração, o baixo número de mulheres em postos de chefia e, de uma forma geral, os salários mais baixos auferidos por mulheres (embora existam outras razões para esta última) no machismo discriminatório dos recrutadores. Muitos deles (arriscar-me-ia a dizer a maioria) mulheres.

Não tenho solução a propôr para este problema. O melhoramento dos incentivos e a flexibilização do mercado de trabalho podem mitigá-lo, mas não fazê-lo desaparecer. É possível que estas medidas, aliadas à remoção de incentivos potencialmente perversos direccionados às chefias (e.g: bónus salariais consoante a produtividade da equipa) seja suficiente para efectivamente resolver o problema no serviço público. Afinal, este é controlado pelo Estado, que tem interesse em adotar uma visão mais abrangente e incentivadora da natalidade, assim como os meios para a pôr em prática. Já o privado não tem nem o interesse nem os meios para tal.

Devo ainda referir que outras medidas que começam a ser populares (como uma % mínima de mulheres em listas partidárias, comissões parlamentares, ou nos quadros de direcção de empresas) são, na minha opinião, extramamente mal direccionadas e, agora sim, injustamente discriminatórias. Talvez um dia os empregos deixem de ter o propósito de geral valor e passem a ser meros instrumentos de satisfacção pessoal, fazendo o problema efectivamente desaparecer. Ou talvez as empresas ganhem uma consciência social superior. Até lá, resta-nos reconhecer  problema frontalmente e sem falsas retóricas, e esperar alguma iluminação.


Filipe Baptista de Morais

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