domingo, 2 de setembro de 2012

Gerir a quinta

Este Verão tive o prazer de ler, num único e viciante dia, outro excelente romance de George Orwell: "Animal Farm". Apesar de não possuir os conhecimentos de História necessários para reconhecer as múltiplas referências da obra, nomeadamente à guerra civil Russa, não deixei por isso de a achar extremamente interessante e intemporal. À semelhança de 1984, o livro explora o imenso poder de redefinição do passado, posto a cru na máxima de 1984 'Quem controla o passado, controla o futuro. E quem controla o presente, controla o passado'.

Mas não se trata apenas de outro forma de re-escrever a mesma história; esta obra aborda ainda brilhantemente a corrupção pelo poder, assim como a facilidade com que rebeldes revolucionários se podem transformar naquilo contra o qual sempre lutaram.

Uma nota sobre este post. Tanto por preguiça como por medo de estragar a fantástica obra de Orwell com um resumo desleixado vou-me abster de o elaborar. Creio que o texto será perceptível mesmo para os leitores que não conheçam o romance, mas recomendo de qualquer modo veementemente a sua leitura.

A ideia de que o poder corrompe as pessoas, apesar de recorrente e não de todo falsa, requer uma análise cuidada. Há quem defenda, por exemplo, que o poder não muda as pessoas; apenas lhes permite agir e exprimir-se de outras formas. Uma ideia que certamente merece alguma atenção. Também é certo que, mal os detentores de poder fazem algo com que não concordamos, tendemos imediatamente a considerá-los corruptos e de mau carácter, muitas vezes atribuindo tal ao facto de terem atingido o poder. Nunca deixará de me espantar a facilidade com que, a meio de uma discussão, as pessoas atacam o nosso interlocutor com o célebre 'Achas que tens sempre razão!' Será que não se apercebem que estão a representar exactamente o mesmo papel? E claro que todos achamos que temos sempre razão, até nos convencerem do contrário. Ou deveríamos ter. Quem abandona as suas crenças simplesmente porque outros opinam que estão erradas necessita seriamente de trabalhar a sua auto-estima.

Voltando à obra, gostaria ainda de comentar mais alguns aspectos. Moses, o corvo que prega sem cessar sobre uma terra paradisíaca para onde todos os animais irão depois de mortos (ridicularizada sob o nome de Sugarcandy Mountain), é desdenhado pelos outros animais após estes se revoltarem contra os humanos. No entanto, após os porcos tomarem o poder antes retido pelos humanos e tiranizarem os outros animais é mencionado que Moses, apesar de nunca ter as suas ideologias oficialmente aceites, é bem recebido pelos porcos líderes que o deixam viver na quinta com uma pensão, sem trabalhar. As semelhanças entre Moses e a Igreja são demasiadas para serem ignoradas, e é interessante notar o tratamento que lhe dão. Apesar de os pensamentos por detrás dos porcos nunca serem apresentados ao leitor, subentendo que no período revolucionário, em que necessitavam dos outros animais com espírito rebelde e reaccionário, tenham considerado as suas ideologias de conformismo e resignação, escondidas sob a miragem distante de um paraíso que a todos chegaria, como perigosas. No entanto, ao tomarem o poder, já é do seu interesse que os outros animais adoptem uma postura passiva e submissa, justificando a re-aceitação do camarada corvo.

Outra questão muito interessante é a dos outros animais, não se considerando tão inteligentes como os porcos, delegarem naturalmente e de livre vontade o poder de decisão nestes últimos. Estes sentimentos de inferioridade são extremamente perigosos e minam os pilares de uma democracia saudável. Infelizmente o seu oposto, uma negação das nossas limitações e falta de conhecimento, pode ser ainda mais prejudicial. Oxalá o bom senso nos livre de tais males.

Também achei extremamente interessante o facto de uma das éguas abandonar a quinta para retornar a donos humanos de livre vontade. Embora, mais uma vez, o livro não explicite os seus motivos, deixa a entender que foi por necessitar em demasia de carícias e ornamentos que as pessoas lhe davam. Isto recordou-me a forma como os conquistadores da época dos descobrimentos ganhavam as boas graças dos locais por presentes brilhantes e coloridos.

Outro aspecto digno de menção é o facto de, apesar de os porcos deterem o poder e tomarem as decisões, esse poder ser exercido através de cães, mais fortes e possantes e obedientemente cegos. Estes foram retirados aos pais à nascença e criados pelos porcos, em adultos mantendo na linha todos os outros animais, incluindo os progenitores. Creio que ninguém duvida da possibilidade de exercer um poderoso controlo sobre as crenças de outras pessoas através da sua educação exclusiva desde novo. Basta olhar para as crenças religiosas.

Também achei extremamente interessante a manobra utilizada pelos porcos para vencer qualquer discussão ou disputa de opinião. Fosse qual fosse o assunto na mesa, argumentariam que a linha de conduta que não lhes agradava levaria ao regresso de Jones (o humano que controlava a quinta, antes da revolução), perguntando de seguida aos outros animais se era isso que desejavam. Isto contém dois truques psicológicos: para além de uma premissa errada (associar o acto a uma consequência que na realidade não lhe pertence) consegue também mover rapidamente o tópico da discussão para um assunto totalmente distinto, neste caso a opinião dos animais em relação ao hipotético retorno de Jones. Todos nós já vimos isto acontecer inumeráveis vezes, quando alguém distorce intencionalmente e por completo uma questão para obter a resposta que deseja. De facto, esta manobra é muitas vezes considerada eloquente e reveladora de uma forte capacidade argumentativa, ao invés de um truque barato. Creio e quero acreditar que tal não se deve à nossa estupidez intrínseca, mas antes a uma extrema preguiça no que diz respeito a analisar cuidadosamente as linhas de argumentação.

Para finalizar gostaria de salientar que, embora não explore essa questão nessa obra, Orwell está bem consciente das dificuldades de exercer uma governação justa. Assim, apesar de criticar a diferença de classes através do satírico e célebre lema 'Todos os animais são iguais. Mas alguns são mais iguais do que outros' introduz subtis referências ao facto de um tratamento por igual nem sempre ser adequado e justo. Um exemplo disto é a discussão em volta das idades de reforma de cada animal, tendo acordado idades diferentes para cada espécie. Convém lembrarmo-nos disto também, para conseguirmos mais e melhor igualdade.


Filipe Baptista de Morais

2 comentários:

  1. Interessantíssimo. Faz-me lembrar, no passado recente, um artigo que li sobre a prisão de Guantánamo. Philip Zimbardo (vd. "Stanford Prison Experiment") foi o psicólogo encarregue de entrevistar os soldados americanos, tentando avaliar em que medida é que foram subvertidos pelo poder e chegou a uma conclusão: "não é que a maçã seja podre, o ambiente é que a torna". Creio que se trata daquilo a que chamas "a facilidade com que rebeldes revolucionários se podem transformar naquilo contra o qual sempre lutaram". Condição tão profundamente humana, fiquei com ganas de ler.

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  2. Os tumultos em Londres não há tanto tempo assim são também um excelente exemplo. Que agora parecem estar a alastrar um pouco por todo o mundo diga-se de passagem. Lê que vale a pena

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